Karina Toledo | Agência FAPESP
– Pesquisadores brasileiros acabam de comprovar em cachorros o potencial do
vírus zika para combater tumores avançados no sistema nervoso central. Os
resultados do estudo foram publicados
nesta terça-feira (10/03) na revista Molecular Therapy.
Três animais com idade
avançada e tumores espontâneos no cérebro foram tratados com injeções virais
por cientistas ligados ao Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco
(CEGH-CEL),
um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiado pela FAPESP na
Universidade de São Paulo (USP).
“Observamos uma reversão
surpreendente dos sintomas clínicos da doença, além de redução tumoral e
aumento de sobrevida – e com qualidade, que é o mais importante. Além disso, o
tratamento foi bem tolerado e não houve efeitos adversos. Estamos superanimados
com os resultados”, disse à Agência FAPESP Mayana Zatz,
professora do Instituto de Biociências (IB) da USP e coordenadora do CEGH-CEL.
A capacidade do zika de
infectar e destruir células de tumores do sistema nervoso central já havia sido
demonstrada pelo grupo em camundongos (leia mais em: agencia.fapesp.br/27676/).
Nesse modelo, a formação de tumores humanos é induzida em laboratório, o que só
é possível em animais imunossuprimidos. Uma das principais vantagens do novo
estudo, segundo os autores, foi a possibilidade de avaliar o efeito da terapia
em animais com o sistema imunológico ativo.
“Os resultados confirmam que a
terapia atua por meio de dois mecanismos. Por um lado, o vírus infecta as
células tumorais, começa a se replicar e acaba levando-as à morte. Por outro,
ativa o sistema imune para a presença do tumor. A infecção desencadeia uma
reação inflamatória e células de defesa começam a migrar para o local”, contou Carolini
Kaid, bolsista de
pós-doutorado da FAPESP e primeira autora do artigo.
Segundo Kaid, tumores do
sistema nervoso central costumam não responder bem à imunoterapia. Isso porque
a barreira hematoencefálica, estrutura que visa proteger o cérebro de
substâncias potencialmente tóxicas presentes no sangue, dificulta a migração
das células de defesa para o local.
No entanto, análises
post-mortem feitas no tecido cerebral dos cães indicaram a presença de
linfócitos T, macrófagos e monócitos infiltrados na massa tumoral.
“Essas análises também
mostraram a presença do zika apenas nas bordas do tumor. Nenhuma outra célula
do cérebro foi afetada. Esse é um achado muito importante, pois nos dá mais
confiança de que o tratamento é seguro”, disse Kaid.
Protocolo terapêutico
Os três cachorros tratados
pela equipe do CEGH-CEL eram pacientes da médica veterinária Raquel Azevedo dos
Santos Madi, que atende em um hospital particular da Granja Viana, na Região
Metropolitana de São Paulo. Todos foram diagnosticados por meio de
ressonância magnética quando a doença já estava em estágio avançado e os sinais
clínicos eram mais evidentes. Nesses casos, a sobrevida média, sem tratamento,
costuma ser de 20 a 30 dias.
O vírus foi inserido no
líquido cefalorraquidiano dos cães por meio de uma injeção na região da coluna
logo abaixo do crânio. Foi usada uma linhagem isolada de um paciente brasileiro
(ZIKVBR), purificada e cedida ao grupo por parceiros do Instituto Butantan.
O tratamento foi conduzido no
hospital e os animais só foram liberados para casa após três testes negativos
para a presença do vírus no sangue e na urina. “Seguimos um protocolo bastante
rígido para evitar a contaminação de outras pessoas”, contou Zatz.
O primeiro cão a receber a
terapia foi o pit bull Pirata, de 13 anos e 26 quilos (kg). “Ele chegou em
estado de pré-coma. Já não ficava em pé e recebia apenas alimentação
parenteral. Três dias após a injeção do vírus voltou a comer, conseguiu se
levantar e esboçar alguns passos. Permaneceu vivo por 14 dias, mas já estava
muito debilitado e teve uma parada cardiorrespiratória. Os donos optaram pela
eutanásia”, contou Zatz.
A maior sobrevida foi
observada no boxer Matheus, de oito anos e 32 kg, que permaneceu vivo por 150
dias após a terapia. Nesse caso, por meio da ressonância magnética, foi
possível observar uma redução de 35,5% da massa tumoral.
A dachshund Nina, de 12 anos e
6,4 kg, foi a terceira paciente tratada. Nesse caso, a sobrevida foi de 80 dias
e a redução da massa tumoral foi de 37,92%.
“Ao contrário do que ocorre no
caso da quimioterapia, os animais não apresentaram nenhuma reação negativa ao
tratamento. Começamos com uma dose bem baixa e, como foi bem tolerada,
aplicamos uma segunda dose 10 vezes maior”, contou Zatz.
Terapia versátil
O tipo tumoral de cada cão só
foi confirmado nas análises de histopatologia feitas após a morte. No boxer foi
encontrado um oligodendroglioma e, na dachshund, um meningioma intracranial.
“No pit bull não foi possível fazer a identificação, pois não encontramos
células do tumor. Aparentemente ele foi eliminado, pois era pequeno”, contou
Kaid.
Nos ensaios feitos com
camundongo, o zika mostrou-se capaz de combater linhagens de meduloblastoma e
de tumor teratoide rabdoide atípico (TTRA) – dois tipos de câncer do sistema
nervoso central de origem embrionária que acometem crianças. Nos testes in
vitro, os pesquisadores haviam observado o potencial do vírus para infectar e
destruir células de glioblastoma e de ependimoma.
Na avaliação de Oswaldo
Keith Okamoto, professor do IB-USP e membro do CEGH-CEL, os dados sugerem
que a terapia viral poderia ser aplicável para vários tipos de câncer no
sistema nervoso central – tanto em pacientes pediátricos como em pessoas acima
de 60 anos. “Esses dois grupos são os que apresentam com maior
frequência tumores agressivos e para os quais não há hoje um
tratamento efetivo”, disse.
O pesquisador investiga há
mais de 15 anos estratégias para destruir células tumorais que apresentam características
similares às das células-tronco. Embora não sejam capazes de se transformar em
qualquer tipo celular, essas “células-tronco tumorais” tornam a doença mais
agressiva e difícil de tratar (leia mais em: agencia.fapesp.br/21884/).
Nos estudos in vitro, o grupo
do CEGH-CEL comparou como o vírus interage com as “células-tronco tumorais” e
com as células progenitoras neurais sadias, uma espécie de célula-tronco
cerebral que dá origem tanto a neurônios como a astrócitos, a oligodendrócitos
e demais células nervosas.
“Quando infectamos as células
progenitoras neurais, o zika interrompe a proliferação e algumas delas morrem.
Mas as esferas [formadas por um agrupamento de células progenitoras em cultura
3D] permanecem relativamente intactas. Já no caso da célula-tronco tumoral a
destruição é bem mais proeminente. Os ensaios in vitro também mostraram que o
vírus não infecta células nervosas maduras, como os neurônios. O que é um
resultado muito bom”, contou Kaid.
Segundo Okamoto, grupos do
Reino Unido e da Grécia estão interessados em conduzir projetos colaborativos
voltados a entender melhor o mecanismo de ação do zika sobre as células-tronco
tumorais.
Paralelamente, o grupo do
CEGH-CEL está reformando uma parte do canil existente no IB-USP para instalar
uma unidade de terapia intensiva que será usada nos novos estudos. “Aprendemos
muito com esses três cachorros e agora pretendemos iniciar um novo estudo
pré-clínico com um número maior de animais. Um dos objetivos é descobrir a dose
ideal do vírus para o tratamento. Se funcionar será uma esperança de tratamento
tanto para os cães quanto para nós. Mas para isso precisamos de mais verbas e
buscamos parcerias”, disse Zatz.
O artigo Safety, tumor
reduction and clinical impact of Zika virus injection in dogs with
advanced-stage brain tumors pode ser lido em https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1525001620301386
Vídeo
Vírus zika combate tumores cerebrais avançados em cachorros
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