Pamplona, F. PhD
May 15 · 2021
Pharmacist
Os lados da inteligência
regulatória sanitária: riquezas e mazelas! ( tal fato ocorre com a vacina
AstraZeneca covid)
Dados os acontecimentos
recentes, vale ressuscitar e estender um pouco a discussão iniciada neste
artigo há pouco mais de 1 ano atrás. O texto tratava das estratégias da empresa
que conseguiu sair na frente e utilizar o mecanismo da RDC 327/2019 antes de
todas as outras que falaram, mas não fizeram. Isso, aquela mesmo que
"patenteou o CBD", como você pode ler aqui e atualizado com detalhes
pelo portal "Cannabis e Saúde".
Em resumo: A carta patente do
INPI BR 112018005423–2 concede à Prati-Donaduzzi a “invenção” de “uma
composição farmacêutica oral de canabidiol” “útil no tratamento de distúrbios
neurológicos, em especial a epilepsia refratária”, que já está sendo
contestada.
Uns não viram, outros não
quiseram ver, e há quem defenda de qualquer modo; porque, afinal, os pacientes
brasileiros terão mais acesso. E "quanto mais gente que precisa de verdade
tendo acesso a produtos derivados de Cannabis no Brasil, melhor". É
verdade, eu também penso assim.
Mas como interessado nos desdobramentos
que o mercado está tendo em nosso país, me sinto no dever de comentar e
"conectar os pontos" para a audiência. Vou considerar que nem todos
tem acesso ao mesmo tipo de informação, ou talvez a bagagem para interpretar os
fatos com este olhar.
Busque o documento que traz o
resumo do "Acordo de Cooperação Técnica" entre a empresa
Prati-Donaduzzi e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que transfere a tecnologia
de produção e gera um contrato de fornecimento da primeira para a segunda por 5
anos. Está disponível. É público.
Esse é um mecanismo conhecido
das empresas para conseguir uma forma de "entrar no SUS" pela porta
lateral, sem licitação, e conseguir vender quantidades exorbitantes sem a
discussão de um contrato direto entre empresa e governo. Afinal, contratos
desta monta frequentemente geram comoção social, como de fato causou a notícia
de que o Ministério da Saúde estimava gastar R$416 milhões com canabidiol,
quando havia apenas um fornecedor no país. A piada aí é que lendo as
entrelinhas, a gente descobre que esse fornecimento está completamente
subestimado, dada a quantidade de brasileiros que poderiam se beneficiar. Ou
seja, o resultado da inclusão do CBD no SUS é literalmente um contrato
bilionário de fornecimento de CBD em modelo de monopólio, gerando o início da
verdadeira corrida do ouro verde no Brasil.
Mas que problema tem nisso,
afinal incorporar o CBD no SUS não deveria ser positivo? Deveria, e é! A grande
questão é que o mecanismo foi um daqueles típicos caminhos tortuosos da via pública
brasileira, que enviesa as letrinhas para favorecer competidores de maneira
desleal. Dito e feito, tanto que a inclusão não foi aprovada pela CONITEC, após
consulta pública, onde receberam diversas contribuições dos especialistas e
sociedade, em fevereiro deste ano.
É um pouco um tiro no pé,
afinal, fica essa corrida em torno do próprio rabo de querermos algo, mas
querermos de maneira justa. Isso é típico de Brasil, afinal, estamos sempre
desconfiados de que algo não está certo quando se fala de grandes contratos com
o governo. E geralmente, onda há fumaça, há fogo.
Pois bem, a questão do
"monopólio" foi resolvida, porque agora temos outros fabricantes
autorizados pela RDC 327/2019, incluindo até mesmo um laboratório nacional,
Farmanguinhos, da Fiocruz. Eba! Ou seja, pros defensores da "autonomia do
governo", é um prato cheio, pois afinal podem defender com afinco que um
laboratório do próprio governo forneça ao SUS o tratamento tão buscado (e
polêmico), evitando assim uma série de efeitos colaterais desleais de uma ação
bilionária exclusiva para uma única empresa.
Assim mesmo, o produto
derivado de Cannabis aprovado esta semana pela ANVISA para fabricação pela
Fiocruz, nada mais é do que o mesmo que a Prati-Donaduzzi vai fornecer. Vai
fazer por 5 anos e depois transferir a grande tecnologia de "misturar CBD
em óleo e envasar numa garrafinha descrita na patente BR 112018005423–2".
UAU, realmente faz sentido uma entidade como Farmanguinhos pagar caro para ter
acesso a essa tecnologia tão complexa e obscura. Seria muito difícil fazer
sozinho, ou ter acesso direto a uma dos trocentos fornecedores disponíveis
[ironia mode on].
O link abaixo traz o resumo do
"Acordo de Cooperação Técnica" entre a empresa Prati-Donaduzzi e a
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que transfere a tecnologia de produção e gera
um contrato de fornecimento da primeira para a segunda por 5 anos.
Esse acordo pode ser
encontrado no diário oficial aqui -
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/extrato-de-acordo-de-cooperacao-tecnica-285967630
Olha que bonitinha a capa da
chamada da Conitec para a consulta pública do "CBD no SUS". Você pode
acessar alguns detalhes aqui:
http://conitec.gov.br/images/Consultas/Relatorios/2021/Sociedade/20210222_ReSoc246_CBD_epilepsia.
Mas que problema tem nisso,
afinal incorporar o CBD no SUS não deveria ser positivo? Deveria, e é! A grande
questão é que o mecanismo foi um daqueles típicos caminhos tortuosos da via
pública brasileira, que enviesa as letrinhas para favorecer competidores de
maneira desleal. Dito e feito, tanto que a inclusão não foi aprovada pela
CONITEC, após consulta pública, onde receberam diversas contribuições dos
especialistas e sociedade, em fevereiro deste ano.
"Que legal, então a
Fiocruz vai produzir CBD, que interessante, me conta mais." Pois é, basta
passar do título e ler criteriosamente pra entender que este foi um verdadeiro
gol de placa da Prati-Donaduzzi. Como assim?
O mecanismo é lícito, está
dentro da regra, e por isso diria que é um gol de placa da empresa que fornece.
Continua fazendo o trabalho passo a passo, talvez com certa simpatia e
facilitação pelo Ministério da Saúde, mas não se pode negar a eficácia da
empresa em entregar o que está no regulamento.
Em termos chulos, se diz que a
empresa "engravidou" a Fiocruz para conseguir acesso ao fornecimento
para o Ministério da Saúde. Abriu mão do longo prazo de um contrato direto
pelos 5 anos de quase monopólio dentro de um contrato de transferência de
tecnologia. É um mecanismo conhecido, lícito, e que já vinha sendo "oferecido"
a várias empresas por supostos negociadores que poderiam facilitar essa entrada
no governo.
Assim, travestida de Fiocruz,
a Prati-Donaduzzi é o lobo em pele de cordeiro que consegue se safar até mesmo
das críticas dos ativistas. De uma hora pra outra (ou até na mesma frase) agora
as pessoas poderão criticar "aquela empresa da patente fraudada" e
"elogiar a coragem e competência da Fiocruz" em oferecer o "CBD
de graça no SUS". É esse o tipo de devaneio que as pessoas tem quando só
leem as manchetes. Tenho certeza que vou observar esse tipo de comportamento.
Você que já leu até aqui e
está bem informado, tem a missão de esclarecer: ambos são basicamente a mesma
coisa. E se antes lhe parecia que a Prati tinha o monopólio, mas agora a
"Fiocruz heroicamente quebrou esse benefício injusto", saiba que na
verdade é até o contrário: esse privilégio aumentou, e muito. Aposto que a
Prati vai fazer 10x mais dinheiro fornecendo IFA à Fiocruz do que vendendo CBD
na farmácia. E "10 vezes" é força de expressão, porque acho que vai
ser muito mais do que isso.
E claro, tecnicamente, não tem
nada de errado nisso. A Prati inclusive é originalmente uma empresa
farmoquímica, esse é justamente o negócio dela. Foi estratégica e conseguiu o
que
queria. Mas eu me orgulharia
muito mais de uma instituição renomada e competente como Manguinhos/Fiocruz
produzindo tecnologia de verdade, e não comprando caro, algo que é de domínio
público, envernizado em uma patente safada.
Isso tem cara, cheiro e um
gosto nauseante de Brasil. Não é para amado
Cannabis na farmácia viva sabe quando? Quando grupos tiverem ganhado muita grana.