Na segunda reportagem da série
‘Ciência pelo Brasil’, vamos conhecer como a estratégia adotada pelo MCTI para
pesquisa e desenvolvimento de vacinas e medicamentos antivirais aproximou
academia da iniciativa privada; caminho busca vencer barreiras na produção
nacional de Ingrediente Farmacêuticos Ativos
Afalta de Ingrediente
Farmacêutico Ativo (IFA), princípio ativo de um medicamento, durante a pandemia
evidenciou a concentração mundial da produção em países como Índia e China, e a
necessidade de o Brasil desenvolver um complexo industrial de saúde próprio,
com capacidade para atender às necessidades nacionais.
Nesse contexto, as ações empreendidas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação (MCTI) deram os primeiros passos para a redução da dependência
externa. “O papel do Ministério é atuar na pesquisa e desenvolvimento. Nesse
processo, detectamos que havia necessidade de conectar os pesquisadores com a
indústria para que saíssemos da fase de pesquisa de bancada, de laboratório, e
avançássemos para os testes clínicos”, explica o coordenador-geral de Ciências
da Saúde, Biotecnológicas e Agrárias, Thiago Moraes.
Ele faz uma analogia desse processo com uma corrida de revezamento com bastão.
“Os institutos de pesquisa e a academia precisam passar o bastão para a
indústria, para que o conhecimento científico possa se tornar um produto”, diz,
tentando ilustrar a necessidade de continuidade na cadeia de desenvolvimento.
Os dados globais corroboram com esse raciocínio. O Brasil está na 13ª posição
no ranking global de produção científica. No entanto, alcançou, em 2022, a 54ª
posição do Global Innovation Index (GII), elaborado pela Organização Mundial da
Propriedade Intelectual (WIPO, na sigla em inglês), uma agência especializada
das Nações Unidas.
Essa corrida, longa e complexa, vai além de ter infraestrutura de alta
tecnologia e da formação de profissionais especializados. É preciso atender os
protocolos de agências reguladoras, como a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) desde o princípio das pesquisas de desenvolvimento em locais
certificados com Boas Práticas de Laboratório e Boas Práticas de Fabricação que
rastreiam e controlam todos os processos.
É na solução para reduzir a diferença entre a produção acadêmica e o
escalonamento industrial que a pasta ministerial está atuando. Para aproximar
os setores, o MCTI investiu R$ 50 milhões, com recursos do Fundo Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), na construção do Centro
Nacional de Vacinas (CNVacinas) em parceria com o governo de Minas Gerais, que
vai investir R$ 30 milhões. O local será um hub para o desenvolvimento de
projetos de inovação nas áreas de imunizantes – incluindo novas plataformas
vacinais, de kits diagnósticos e de fármacos, com foco na transferência
tecnológica para empresas e instituições que atuem no mercado de saúde.
Pesquisadores que trabalham com o desenvolvimento de imunizantes em todo o
território nacional poderão utilizar a estrutura.
Em outra frente, a pasta investiu no desenvolvimento de medicamentos contra a
Covid-19, especialmente vacinas. O MCTI aplicou recursos em dez projetos
nacionais de desenvolvimento de vacinas que contemplaram 15 diferentes
estratégias. Os projetos permitiram incorporar novas plataformas tecnológicas.
Foram disponibilizados outros R$ 105 milhões para a realização de ensaios
clínicos de Fase I e II aos projetos que receberam autorização da Anvisa. Cinco
projetos foram qualificados nessa etapa e, até o momento, dois receberam
autorização da Anvisa para iniciarem os ensaios clínicos: SpiN-Tec MCTI UFMG e
RNA MCTI Cimatec HDT.
Para assegurar a finalização do desenvolvimento de vacinas no Brasil, os estudos clínicos de Fase III, o MCTI, em conjunto com a Finep, lançou edital em que as propostas deveriam contemplar arranjos com a participação de laboratórios farmacêuticos. As indústrias serão as responsáveis por escalonar a produção do IFA e envasar a vacina. A seleção pública viabilizou a integração entre ciência de alto padrão, já apoiada com os Institutos de Ciência e Tecnologia, e o interesse empresarial em projetos com risco tecnológico associado. As duas propostas selecionadas receberão apoio total de R$ 187,4 milhões em recursos de subvenção econômica. A farmacêutica Cristália é a parceira do Senai-Cimatec, e a Hipolabor vai produzir a SpiN-Tec.
Modelo inovador - A previsão é que a fase 3 de ensaios clínicos a SpiN-Tec MCTI UFMG seja realizada em 2024 e envolva mais de 4 mil voluntários. O laboratório Hipolabor já iniciou as adequações internas para a produção do novo fármaco. De acordo com o presidente da farmacêutica, Renato Alves, o primeiro passo envolve a estruturação da equipe para alinhar os objetivos de inovação que o novo produto impõe.
“Estamos falando de um produto totalmente inovador e precisamos alinhar a estrutura fabril à essa nova mentalidade”, comenta Alves, indicando que também serão executadas obras de adequação e aquisição de equipamentos para receber a nova tecnologia dos pesquisadores da UFMG.
Ao mencionar esse novo alinhamento, Alves recorda que a indústria farmacêutica nacional é voltada para a produção de genéricos, medicamentos cujas patentes expiraram. De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), o Brasil produz apenas 5% do IFA, número que na década de 1980 estava próximo de 50%. A entidade defende que o país produza pelo menos 20% dos IFAs que consome, e estima que leve até dez anos e requeira investimentos superiores a R$ 1 bilhão.
Mas, segundo Alves, o escalonamento industrial da vacina SpiN-Tec será uma oportunidade de demonstrar que o modelo é promissor e que a indústria farmacêutica brasileira precisa inovar. “A nossa indústria está criando uma consciência de que não há outro caminho para a indústria farmacêutica brasileira, que é um dos maiores mercados do mundo de medicamentos, que não seja iniciar e trilhar esse caminho da inovação”, enfatiza.
Para ele, o modelo de arranjo institucional adotado conseguiu agrupar financiamento público, pesquisadores de reconhecida capacidade, laboratório que domina a produção de vacinas e uma indústria com experiência na produção. Com êxito na iniciativa, Alves acredita que a mesma metodologia ou semelhante possa ser adotada para o desenvolvimento de outros fármacos. “Temos todos os ingredientes dentro do país para construir uma indústria farmacêutica inovadora no Brasil. Temos uma oportunidade, que é um primeiro passo que transforme a indústria nacional”, destaca Alves sobre a necessidade de inovação.
Tecnologias internalizadas de modo mais célere - A pesquisadora Bruna Machado, coordenadora do projeto da vacina RNA MCTI Cimatec HDT, que envolve transferência de tecnologia, relata que a incorporação da plataforma tecnológica da vacina de RNA é importante para o desenvolvimento, no Brasil, de vacinas para outras doenças, como as negligenciadas, câncer e arboviroses (dengue, zika e chikungunya).
A vacina contra a Covid-19 que ela coordena carrega duas plataformas tecnológicas: o transportador lipídico (Lion), que leva o princípio ativo até as células-alvo, conferindo estabilidade; e o replicon de RNA, que além de ensinar o organismo humano a produzir a proteína do SARS-CoV-2 é auto replicável. “A dose da vacina é muito menor para provocar resposta imunológica robusta e duradoura”, explica a pesquisadora.
Os resultados do ensaio clínico de fase 1, realizado com 90 voluntários, estão em avaliação pela Anvisa. A previsão é que a fase 2 dos testes, com um grupo de 330 voluntários, se inicie em março deste ano, quando será avaliada a segurança e a imunogenicidade. A fase 3, que deve envolver 4 mil voluntários, está prevista para ser realizada em 2024 e testará uma dose de concentração escolhida na fase 2. Para essa fase, o instituto de pesquisa contará com a indústria farmacêutica Cristália, que vai escalonar a produção da vacina.
A pesquisadora afirma que o apoio recebido do MCTI para a realização dos ensaios clínicos acelerou a internalização da tecnologia e o desenvolvimento clínico. Segundo ela, o Senai-Cimatec já dispõe de capacidade de produzir em escala laboratorial os dois componentes da vacina, o repRNA e a Lion (do inglês, Lidic Inorganic Nanoparticles, que tem a função de nanocarreador), e de melhorar o IFA. Isso significa que o instituto já trabalha com novas variantes do vírus, como a produção do RNA com a variante Ômicron; realiza ensaios pré-clínicos incorporando duas variantes, a chamada vacina bivalente; e está avançando para uma vacina que combata influenza e Covid-19 ao mesmo tempo.
“Tudo isso foi passível de ser feito graças à incorporação dessa tecnologia, mesmo que em escala laboratorial. E que agora será feito em escala industrial, por meio do laboratório Cristália”, afirma Bruna.
Outro passo estratégico dado pelo MCTI para sanar gargalos tecnológicos foi a constituição da Rede Pró-IFA, uma rede nacional de pesquisa, desenvolvimento e inovação em insumos farmacêuticos. A Rede foi organizada com o objetivo de articular as instituições de pesquisas com competências complementares, fortalecendo assim os grupos de pesquisa nacionais, e, indiretamente, a indústria farmoquímica nacional. A ideia é criar um ambiente que proporcione a integração de esforços e o compartilhamento de infraestruturas para o desenvolvimento e escalonamento de IFAs.
Série ‘Ciência pelo Brasil’ - Na primeira reportagem, destacou-se os avanços proporcionados pela rede Corona-Ômica, responsável pela vigilância genômica do vírus que depositou mais de 70 mil genomas no GISAID, tornou-se referência e fomentou outras redes pelo Brasil, treinou profissionais e tem como desafios atuar no sequenciamento genômico de outros vírus e bactérias.