Pesquisa realizada pelo
Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) aponta que os mosquitos Culex
quinquefasciatus do Rio de Janeiro não possuem competência vetorial para
transmitir as linhagens locais do vírus zika. A participação desta espécie
(popularmente conhecida como pernilongo ou muriçoca) no ciclo de transmissão da
doença é uma das hipóteses investigadas para explicar a rápida disseminação do
vírus zika pelo país. Para comparação, também foram estudados mosquitos Aedes
aegypti, constatando-se, em contraste, sua alta capacidade de transmissão do
patógeno. Estas evidências científicas reforçam que as estratégias de controle
de zika devem permanecer focadas no Aedes aegypti, principal vetor do vírus nas
Américas. O Instituto Pasteur de Paris é parceiro do estudo, publicado na
revista científica Plos Neglected Tropical Diseases.
De janeiro a março de 2016, o
Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC coletou ovos e
larvas de Culex quinquefasciatus em quatro bairros da cidade do Rio de Janeiro:
Manguinhos e Triagem, na Zona Norte, Jacarepaguá, na Zona Oeste, e Copacabana,
na Zona Sul. Os ovos e larvas foram levados para o laboratório e, quando
atingiram a fase de mosquitos adultos, foram separados em gaiolas. Em seguida,
foram alimentados com sangue infectado com o vírus zika. Para isso, foram
usadas duas linhagens locais do vírus, isoladas, em janeiro, pelo Laboratório
de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC, a partir de amostras de pacientes
do Rio de Janeiro. “Utilizamos mosquitos coletados diretamente em campo e
linhagens do vírus circulantes na cidade na mesma época para que o resultado
pudesse ser o mais fiel possível à realidade do Rio de Janeiro”, explica
Ricardo Lourenço, chefe do Laboratório de Mosquitos Transmissores de
Hematozoários e coordenador do estudo.
Metodologia
Cerca de 30 mosquitos de cada
gaiola foram analisados aos 7, aos 14 e aos 21 dias após a alimentação com
sangue infectado. Foram testadas as seguintes partes do corpo: abdômen/tórax
(onde estão localizados o estômago, onde o sangue se aloja logo após a
alimentação, e as glândulas salivares do mosquito), cabeça (para verificar se
ocorreu disseminação do vírus no corpo do mosquito depois da ingestão) e saliva
(para verificar a possibilidade de transmissão do vírus durante a picada).
As amostras de abdômen/tórax e
cabeça foram analisadas por meio de duas técnicas: RT-PCR em tempo real e a
inoculação em cultura de células Vero (derivadas de rim de macacos), um método
amplamente usado em estudos sobre atividade viral no caso da família dos
flavivírus, à qual pertencem os vírus zika e dengue. Enquanto a técnica de
RT-PCR em tempo real é capaz de detectar e quantificar o material genético do
vírus, a metodologia de análise em células Vero é recomendada para identificar
se o vírus está ativo (capaz de causar infecção em vertebrados). Em relação às
amostras de saliva, foi usada apenas a técnica de inoculação em células Vero,
uma vez que o baixo volume de saliva expelida pelo vetor não permitiria a
aplicação de uma segunda técnica.
Resultados
Foram mais de mil amostras
analisadas, referentes a 392 mosquitos. Somente em dois exemplares de mosquitos
Culex quinquefasciatus, provenientes dos bairros de Triagem e Manguinhos, foi
detectada infecção inicial no abdômen/tórax, no período de 14 dias após a
alimentação com sague infectado, e nenhuma partícula viral foi identificada na
cabeça e nem na saliva desses mesmos mosquitos. “O achado indica que o vírus
zika não consegue se disseminar completamente pelo corpo do Culex
quinquefasciatus. Logo, os dados mostram que o inseto não é capaz de transmitir
o patógeno, uma vez que não há presença de partículas infectantes do vírus na
saliva que possam ser expelidas no momento da picada e infectar um ser humano”,
explica Lourenço.
Para uma análise comparativa,
os mesmos protocolos foram usados para testar mosquitos Aedes aegypti também do
Rio de Janeiro, provenientes dos bairros da Urca, na Zona Sul, e de Paquetá,
ilha situada na Baía de Guanabara. Os resultados foram completamente distintos:
enquanto as taxas de infecção no abdômen/tórax entre os Culex quinquefasciatus
foram mínimas (apenas dois exemplares, após 14 dias de alimentação com sangue
infectado), altos índices de infecção no abdômen/tórax foram verificados entre
85% a 97% dos Aedes aegypti testados após 14 e 21 dias da alimentação com
sangue infectado, independentemente da linhagem do vírus zika usada no
experimento. “Chegamos a detectar Aedes que em apenas sete dias após a
alimentação já apresentavam infecção no abdômen/tórax”, enfatiza Ricardo. Se,
nos Culex quinquefasciatus, não foram observadas partículas virais na saliva em
nenhum período de tempo após a alimentação com sangue infectado, mais de 90%
dos Aedes apresentaram vírus ativo na saliva 14 dias após a alimentação.
“Pouco é sabido sobre o vírus
zika e sua interação com o organismo do mosquito. É possível que a combinação
entre as variações genéticas dos vírus e as variações genéticas dos mosquitos,
ao longo de sua distribuição territorial, impacte na competência para a
transmissão. O que podemos dizer é que, com base em amostras representativas
tanto para os mosquitos quanto para o vírus zika, no Rio de Janeiro, os
resultados, até o momento, apontam que o foco para o controle da doença, no
Brasil e em áreas endêmicas nas Américas, deve permanecer na eliminação de
criadouros do mosquito Aedes aegypti”, avalia o pesquisador.
Parceira do estudo, a
pesquisadora Anna-Bella Failloux, chefe da unidade de Arboviroses e Insetos
Vetores do Instituto Pasteur de Paris, ressalta a importância do resultado. “O
trabalho em conjunto com a equipe do Laboratório de Mosquitos Transmissores de
Hematozoários está nos permitindo, mais uma vez, contribuir diante de uma
emergência de saúde mundial. Essa colaboração ocorre no contexto da rede
internacional dos Institutos Pasteur, que conta com 33 unidades em diversos
países e da qual o Instituto Oswaldo Cruz e a Fiocruz fazem parte”, acrescenta
a cientista.
Inseto vetor
Para determinar que a
transmissão de uma doença é realizada por uma determinada espécie de inseto
vetor é necessário realizar duas constatações. Além de comprovar em laboratório
que este vetor é capaz de transmitir o vírus, por meio de testes que avaliam a
capacidade de transmissão, é necessário localizar na natureza exemplares desta
espécie que estejam infectados com o vírus (o que é chamada de infecção
natural). Há mais de um ano, a equipe liderada por Lourenço coleta mosquitos em
localidades onde foram identificados casos de zika, no Estado do Rio de
Janeiro. Dos mais de mil mosquitos adultos capturados, cerca da metade era da
espécie Aedes aegypti e a outra de Culex quinquefasciatus.
A partir desse trabalho, um
resultado inédito foi divulgado em maio de 2016, quando, pela primeira vez no
Brasil e na América do Sul, mosquitos Aedes aegypti naturalmente infectados com
o vírus zika foram identificados. Por meio da técnica de RT-PCR em tempo real
foi possível identificar a presença do material genético do vírus zika. Quando
comparado com amostras de vírus circulantes em humanos no Rio de Janeiro, foi
constatada similaridade genética superior a 99%. Nenhum mosquito Culex quinquefasciatus
foi encontrado com infecção natural do vírus zika ao longo das coletas
realizadas até o momento. “Este é um trabalho antigo, que realizamos há mais de
uma década, incialmente com foco em dengue, e, mais recentemente, ampliado para
zika e chikungunya”, diz Lourenço, acrescentando que as coletas continuam.
Outros estudos sobre o Culex
A capacidade de determinado
mosquito vetor para transmitir um agente patogênico pode variar de acordo com
combinações específicas da linhagem viral e do genótipo do inseto. No caso do
vírus zika, diversas iniciativas estão empenhadas em investigar esta
associação, considerando mosquitos de diferentes regiões e vírus que circularam
em locais e momentos distintos.
Estudo realizado por
pesquisadores na Fiocruz Pernambuco, divulgado em julho, detectou a presença
natural do vírus zika em mosquitos Culex quinquefasciatus coletados na cidade
do Recife. O mesmo grupo anunciou que, durante experimentos de competência
vetorial realizados em laboratório, a partir do terceiro dia após a alimentação
artificial dos mosquitos, a presença do vírus foi verificada nas glândulas
salivares de mosquitos Culex quinquefasciatus, usando-se a técnica de
microscopia eletrônica. Também foi observada, pela técnica de RT-PCR
quantitativa, a presença do vírus na saliva expelida pelos mosquitos
infectados. No estudo de infecção laboratorial, os mosquitos foram infectados
oralmente com a linhagem ZIKU BRPE243/2015 do vírus Zika. Estudos adicionais
estão em andamento.
No México, após ampla
varredura, pesquisadores da Universidade do Texas Medical Branch, dos Estados
Unidos, identificaram somente mosquitos Aedes aegypti naturalmente infectados
com o vírus zika. Nenhum mosquito Culex quinquefasciatus foi encontrado
naturalmente infectado. O artigo foi publicado no The Journal of Infectious
Diseases. Já especialistas da Universidade de Wisconsin, também dos Estados
Unidos, constataram, após testes laboratoriais realizados com a linhagem
asiática do zika, que mosquitos da espécie Culex pipiens são incapazes de
transmitir o vírus, ao passo que Aedes aegypti testados simultaneamente foram
competentes para transmitir o vírus. A pesquisa foi publicada no periódico
Emerging Infectious Diseases. Ambos os achados foram divulgados em julho.
Em agosto, outro grupo de especialistas
da Universidade do Texas Medical Branch divulgou estudo mostrando que mosquitos
Aedes aegypti apresentaram eficiência vetorial para transmissão do vírus,
diferentemente dos insetos da espécie Culex quinquefasciatus, que foram
incapazes de transmitir. No processo de infecção experimental, foram usadas
linhagens do vírus zika isoladas em 2010, no Camboja. Os dados foram
disponibilizados no site da instituição.
Pesquisadores da Kansas
University testaram a capacidade de transmissão de zika por mosquitos Culex
quinquefasciatus e Culex pipiens coletados nas localidades de Vero Beach, na
Flórida, de Anderson, na Califórnia, e de Ewing, em Nova Jersey, todas nos
Estados Unidos. Os mosquitos foram alimentados com sangue infectado com a
linhagem asiática do vírus zika, isolado em 2015, de um paciente de Porto Rico.
No artigo, publicado em agosto na revista científica Vector-Borne and Zoonotic
Diseases, foi demonstrado que a probabilidade de transmissão do vírus pelas
espécies é baixa. Embora a infecção e disseminação do zika tenha sido detectada
nas três populações de mosquitos imediatamente após a alimentação, a detecção
viral não foi confirmada pelo método de RT-PCR em nenhuma das populações aos 7
e aos 14 dias após a infecção, indicando que o patógeno não chegou às glândulas
salivares.
Em estudo publicado em
setembro no periódico europeu Eurosurveillance, pesquisadores do Instituto
Pasteur em colaboração com o Laboratório de Mosquitos Transmissores de
Hematozoários do IOC, constataram que mosquitos Culex quinquefasciatus, da
Califórnia, nos Estados Unidos, e Culex pipiens, de Tabarka, na Tunísia, não
são competentes para transmitir a linhagem asiática do vírus zika, a mesma que
circula no Brasil. A conclusão veio após dois diferentes testes. Além da alimentação
oral com sangue infectado com o vírus zika isolado em 2014, na Nova Caledônia,
os especialistas inocularam uma alta taxa de vírus diretamente no tórax dos
mosquitos. Mesmo com a infecção forçada, de forma a ‘pular’ a passagem do vírus
pelo estômago, não foi observada a presença de vírus infectante na saliva
expelida pelos mosquitos. Logo, não houve eficiência para transmissão.
Na mesma edição da
Eurosurveillance, uma pesquisa realizada na Itália apontou que mosquitos Culex
pipiens coletados no país não são capazes de transmitir o vírus zika. De forma
comparativa, a competência vetorial dos mosquitos Aedes aegypti – coletados no México
e mantidos em uma colônia em laboratório – foi confirmada no trabalho. Os
mosquitos foram alimentados com sangue infectado por vírus zika da linhagem
asiática, a mesma que circula nas Américas. Em análises realizadas três, sete,
10, 14, 20 e 24 dias após a alimentação, nenhum mosquito Culex pipiens
apresentou vírus disseminado pelo organismo ou na saliva. Já entre mosquitos
Aedes aegypti, a disseminação do zika no organismo e a presença de partículas
virais na saliva foram detectadas a partir de sete dias após a infecção. A
investigação foi realizada por cientistas do Istituto Superiore di Sanità e do
European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC).
Vinícius Ferreira e Cristiane
Albuquerque (IOC/Fiocruz)