Do
início de 2017 até 24 de fevereiro, o Brasil registrou 326 casos confirmados de
febre amarela, com 109 óbitos. Até o momento, os dados indicam que as
notificações estão associadas ao ciclo silvestre da doença, afetando pessoas
que contraíram o vírus em áreas de mata ou em suas proximidades. Segundo o
Ministério da Saúde, os casos de infecção urbanos não ocorrem no país desde
1942. Uma das diferenças centrais entre as duas formas de aquisição da infecção
está nos mosquitos que transmitem o vírus da febre amarela em cada ambiente,
como explicam pesquisadoras do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). Enquanto
nas florestas insetos dos gêneros Haemagogus e Sabethes disseminam o agravo,
nas cidades, o Aedes aegypti, vetor da dengue, zika e chikungunya,
tem potencial de transmissão.
Os mosquitos Haemagogus, como o Hg.
leucocelaenus, são vetores primários da febre amarela silvestre (foto: Josué
Damacena)
“Os
mosquitos Haemagogus e Sabethes vivem na copa das árvores. Por isso, o alvo
preferencial das suas picadas são os macacos, que compartilham o mesmo
habitat”, relata Dinair Couto, pesquisadora do Laboratório de Mosquitos Transmissores
de Hematozoários. Assim, no ciclo silvestre da febre amarela, a circulação do
vírus é mantida pela interação entre os vetores e os primatas, que são os
principais hospedeiros e amplificadores do vírus: é a partir da picada em
primatas infectados que mais mosquitos podem contrair o vírus. Os símios da
América do Sul são muito sensíveis ao vírus da febre amarela. Eles adoecem de
forma semelhante aos seres humanos e frequentemente morrem. O óbito de macacos
em determinada área é um dos principais indício de circulação do vírus na
floresta. “Nesse ciclo, a infecção humana ocorre de forma acidental. Ao entrar
ou se aproximar de uma área de mata onde há epizootia [mortalidade de macacos],
as pessoas não vacinadas podem contrair a infecção através de picadas de
mosquitos Haemagogus ou Sabethes infectados, que eventualmente descem da copa
das árvores para perto do solo. Sem imunidade à doença, elas serão infectadas”,
completa Maria Goreti Freitas, pesquisadora do mesmo Laboratório.
Diferentes
espécies de mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes podem transmitir a
febre amarela em ambientes silvestres. No Brasil, as mais frequentes são Haemagogus
janthinomys e Haemagogus leucocelaenus, insetos
considerados vetores primários da forma silvestre da doença, uma vez que suas
características genéticas, biológicas e comportamentais são favoráveis para a
transmissão, tornando-os capazes de desencadear e manter a circulação do vírus.
Entre as espécies do gênero Sabethes, as mais comuns são Sabethes
chloropterus e Sabethes albiprivus, mosquitos considerados
vetores secundários do vírus, pois não são capazes de sustentar a circulação
viral isoladamente, mas podem contribuir para a sua manutenção. Os dois gêneros
de insetos podem ser encontrados em florestas de Norte a Sul do país.
Hábitos
e aparência
Visualmente,
Haemagogus e Sabethes são mosquitos bem diferentes. No entanto, seus hábitos
apresentam semelhanças. No primeiro grupo, os Hg. leucocelaenus apresentam
o tórax coberto de escamas escuras com uma faixa prateada longitudinal na parte
superior, enquanto os Hg. janthinomys possuem o tórax coberto
de escamas de tonalidade escura, que varia de verde-escuro a azul. “A olho nu,
os Haemagogus se parecem com os Aedes, sendo que os Hg. leucocelaenus se
assemelham especialmente aos Aedes albopictus por possuírem a
mesma listra longitudinal no tórax. A principal diferença é que eles não
apresentam listras brancas nas pernas”, destaca Dinair. Por outro lado, os
Sabethes chamam atenção pelo colorido metalizado, com tons de violeta, roxo,
azul e verde.
Segundo Dinair, algumas características da
biologia dos mosquitos Haemagogus, como o tempo de vida longo, podem favorecer
a transmissão da febre amarela silvestre (foto: Josué Damacena)
Os
Haemagogus e Sabethes são estritamente silvestres, sendo que os Sabethes são
ainda mais seletivos na sua dispersão. Os vetores se concentram nos locais de
vegetação preservada, e os Haemagogus podem ser encontrados ainda na periferia
das florestas, nas chamadas franjas da mata, onde os Sabethes geralmente não se
aventuram. Hg. leucocelaenus pode voar alguns quilômetros
através de desacampados para atingir porções de mata isoladas pela ação do
homem. Para se reproduzir, esses insetos colocam seus ovos nos ocos das árvores
e em bambus, no acúmulo de água formado nos internódios (as conexões entre
trechos do caule). Assim como os Aedes, os Haemagogus não depositam seus ovos
diretamente na superfície aquática, mas sim na parede interna do criadouro
próximo à lâmina d’água. Quando os ovos são submersos, as larvas eclodem e
passam a se desenvolver, se alimentado da matéria orgânica presente na água,
até se tornarem pupas. Cerca de sete a dez dias após a eclosão dos ovos, os
Haemagogus chegam à fase de mosquitos adultos. Já os Sabethes lançam seus ovos
diretamente sobre a superfície da água e chegam à fase adulta quase um mês
depois. Insetos Haemagogus e Sabethes possuem um tempo de vida considerado
longo para mosquitos, o que pode favorecer a propagação dos vírus. Observações
em laboratório indicam que o tempo de sobrevivência de ambos ultrapassa meses
após os insetos atingirem a idade adulta. “Esse fator é importante porque, uma
vez infectado, o mosquito permanece portador e capaz de transmitir o vírus da
febre amarela durante toda a vida”, diz Dinair.
Comparações
com o Aedes
Insetos
Haemagogus e A. aegypti compartilham uma vantagem reprodutiva:
seus ovos podem permanecer viáveis no ambiente por períodos de seca, até que a
chuva abasteça novamente os criadouros com água, contribuindo para o nascimento
das larvas. A resistência à dessecação é menor para os Haemagogus – cerca de
quatro meses – do que para os A. aegypti – pode chegar a um
ano. Ainda assim, segundo as pesquisadoras, o período é longo o suficiente para
favorecer a continuidade das espécies em locais com variação na frequência de
chuvas. Em contrapartida, os ovos de Sabethes precisam entrar em contato com a
água logo após a postura ou perdem a viabilidade.
Goreti ressalta que a vacinação é fundamental
para prevenir a febre amarela nas áreas com risco de transmissão da doença
(foto: Josué Damacena)
Ainda
no aspecto reprodutivo, os Hg. leucocelaenus possuem uma
particularidade: apenas partes dos seus ovos eclode após a primeira submersão
em água, enquanto o restante permanece latente, pronto para eclodir em
submersões subsequentes. Esse mecanismo faz com que um único lote de ovos dê
origem a diversos grupos de mosquitos no decorrer do tempo, favorecendo a sobrevivência
da espécie no ambiente por um longo período. Ao mesmo tempo, contribui para a
manutenção da circulação do vírus da febre amarela, uma vez que as fêmeas
infectadas transmitem o vírus para a prole, em um processo chamado de
transmissão transovariana.
A
capacidade de percorrer longas distâncias também é um diferencial dos Hg.
leucocelaenus. Esses insetos podem alcançar um raio de dispersão de até 6
km, distanciando-se bastante dos seus criadouros. Para comparação, os A.
aegypti costumam passar toda a vida adulta perto dos locais onde
nasceram. Pesquisas apontam que em ambientes com alta densidade, com casas
muito próximas, esses mosquitos voam usualmente num raio de 40 a 50 metros. Já
em regiões sem barreiras, como montanhas, praias ou grandes avenidas, eles
atingem até 800 metros.
Haemagogus
e Sabethes são mosquitos diurnos, assim como os A. aegypti. No
entanto, enquanto a espécie urbana prefere picar no começo da manhã e no final
da tarde, os vetores silvestres apresentam maior atividade do meio-dia até o
pôr do sol, com alguns estudos indicando dois picos: das 12h às 14h e das 16h
às 17h. “É interessante observar que esses horários coincidem, muitas vezes,
com a atividade humana na mata, tanto para trabalho, quanto para lazer”,
comenta Goreti.
Sazonalidade
A
presença do vetor não é o único fator necessário para a ocorrência de casos de
febre amarela. Para que a doença seja disseminada, é preciso haver também vírus
em circulação e indivíduos suscetíveis, que possam ser infectados. Considerando
esse tripé, os registros de febre amarela em áreas silvestres costumam ter um
caráter sazonal, com ocorrência de surtos maiores em intervalos de cinco a dez
anos. Geralmente, os casos acontecem entre dezembro e maio, meses chuvosos em
grande parte do Brasil, o que favorece a proliferação dos vetores. Além disso,
embora haja registros da doença anualmente, epizootias de maior escala são
observadas em intervalos de cinco a dez anos. Isso ocorre porque, após um
surto, grande parte dos primatas infectados morre e aqueles que sobrevivem
adquirem imunidade para o resto da vida. Com isso, a circulação da doença se torna
limitada pela ausência de indivíduos suscetíveis e só volta a crescer conforme
o número de macacos jovens, que não tiveram contato com o agravo, aumenta.
Importância
da prevenção
“Quando
ocorre uma grande epizootia, o risco de casos humanos acontecerem aumenta, pois
a circulação do vírus se torna mais intensa. Porém, é importante destacar que,
diferentemente dos animais, as pessoas possuem um meio eficaz de se prevenir: a
vacina”, enfatiza Dinair. Considerando a área de circulação do vírus, a vacinação
de rotina é recomendada em 19 estados brasileiros. Além disso, por causa do
aumento no número de casos registrados no Sudeste desde o início do ano, há
indicação temporária de imunização para o oeste do Espírito Santo, noroeste do
Rio de Janeiro e oeste da Bahia. A lista de municípios com recomendação de
vacina pode ser conferida no site do Ministério da
Saúde. Pessoas que vão viajar para estas localidades também devem se
vacinar com, pelo menos, dez dias de antecedência.
De
acordo com Goreti, além de seguir as recomendações para imunização, é
importante intensificar o combate ao A. aegypti nas cidades,
para prevenir um possível retorno da forma urbana da febre amarela.
“Teoricamente, a transmissão do agravo no ambiente urbano pode vir a ocorrer se
uma pessoa doente for picada por um A. aegypti. Portanto, combater
o mosquito é fundamental para reduzir o risco da reintrodução, assim como para
enfrentar a dengue, a zika e a chikungunya”, diz a pesquisadora, lembrando que
eliminar os criadouros é uma das principais formas de atacar o vetor. “Diferentemente
das espécies silvestres, que colocam seus ovos nos ocos das árvores, o A.
aegypti prefere os criadouros artificiais, comuns no ambiente urbano.
Por isso, é preciso vedar as caixas d’águas, colocar tela nos ralos e guardar
adequadamente os objetos que podem acumular água”, orienta ela.
Fiocruz,
Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)