Durante
a gravidez o corpo da mulher passa por diversas modificações biológicas, entre
as quais uma diminuição da atividade de seu sistema imunológico para evitar que
ele ataque o feto em desenvolvimento, especialmente nos dois primeiros
trimestres da gestação — o que a deixa mais vulnerável a infecções. E é
justamente aproveitando esta vulnerabilidade que o vírus da zika suprime ainda
mais o funcionamento do sistema imunológico das grávidas de um modo parecido
com que o HIV, vírus causador da Aids, faz para se multiplicar e atingir o
bebê, mostra pesquisa publicada ontem no periódico científico “Nature
Microbiology”.
Vítima. Bebê com
microcefalia é alimentado em instituição no Rio: vírus ataca imunidade da mãe
para
No
estudo, cientistas liderados por Jae Jung, professor do Departamento de
Microbiologia Molecular e Imunologia da Universidade do Sul da Califórnia, nos
EUA, primeiro procuraram determinar como as diferentes linhagens do vírus da
zika, africana e asiática, se comportavam no sangue de pessoas saudáveis.
Assim, eles infectaram amostras retiradas de homens e mulheres, grávidas ou
não, com entre 18 e 39 anos separadamente com antigos vírus africanos e versões
asiáticas mais recentes — estas últimas associadas à epidemia que atingiu
diversos países das Américas nos últimos anos, o Brasil inclusive, e que foram
ligadas a casos de microcefalia e outras malformações congênitas em bebês
nascidos de mães que tiveram a doença durante a gravidez.
LINHAGENS
FICAM MAIS TEMPO NO ORGANISMO
O
experimento verificou que tantos os vírus africanos quanto os asiáticos atacam
preferencialmente um tipo de célula do sistema imunológico conhecido como
monócito CD14+. Mas enquanto as linhagens africanas induzem estas células a se
transformarem principalmente nos chamados macrófagos M1, outro tipo de célula
de defesa do organismo ligada a processos inflamatórios, os vírus asiáticos
levaram estas células a se multiplicarem e diferenciarem em macrófagos M2, com
ação imunossupressora. Isto porque estas células liberam no sangue substâncias
conhecidas como citocinas, que sinalizam ao organismo que a infecção estaria
debelada e é hora de se concentrar na reparação dos danos, diminuindo a
atividade do sistema imunológico.
Segundo
os cientistas, enquanto mulheres grávidas já têm níveis maiores de macrófagos
M2 no sangue, cerca de 4% do total, exatamente para evitar que o sistema
imunológico ataque o feto, esta proporção cresceu para 10% nas amostras de
sangue infectadas com vírus africanos, e disparou para 70% nas que receberam as
versões asiáticas do zika. E com as reações do sistema imunológico das grávidas
ainda mais suprimidas, estas linhagens do vírus da zika conseguem se
multiplicar mais e permanecer por mais tempo no organismo das mulheres doentes,
atravessando a barreira da placenta para atacar os fetos.
—
As mulheres grávidas são mais suscetíveis ao vírus da zika porque a gravidez já
suprime naturalmente o sistema imunológico da mulher para que seu corpo não
rejeite o feto, que é essencialmente um corpo estranho — resume Jung. — Nosso
estudo mostra que as mulheres grávidas são mais suscetíveis à imunossupressão,
e o vírus da zika explora esta vulnerabilidade para infectá-las e se replicar.
Diante
destes resultados, os cientistas resolveram comparar seus achados com o sangue
de 30 mulheres comprovadamente infectadas pelo vírus da zika durante a gravidez
— dez em cada trimestre —, além de amostras de outras 15 grávidas que não foram
atingidas pela doença, sendo cinco de cada trimestre. As análises mostraram que
as mulheres infectadas apresentavam uma atividade anormalmente alta dos genes
ADAMTS9 e FN1. O primeiro já foi associado a baixo peso nos recém-nascidos e
partos longos e complicados, enquanto o segundo foi ligado a problemas no útero
que levam ao desenvolvimento de bebês incomumente pequenos e préeclâmpsia, isto
é, elevação aguda e perigosa da pressão sanguínea da mãe.
—
Embora a microcefalia tenha recebido muita atenção, o problema mais comum
(provocado pela infecção pelo vírus da zika na gravidez) é o desenvolvimento
anormal do cérebro e a formação de acumulações de cálcio no cérebro dos
recém-nascidos — destaca Jolin Suan-Sin Foo, pesquisadora do laboratório de
Jung e primeira autora do artigo de ontem na “Nature Microbiology”. — Essas
anomalias provocam danos cerebrais e atrasos no desenvolvimento dos bebê mesmo
que eles tenham nascido com cabeças de tamanho normal.
MOMENTO
PARA DESENVOLVER ARSENAL
Chefe
do Laboratório de Virologia Molecular do Instituto de Biologia da UFRJ, Amilcar
Tanuri considerou o estudo “muito importante” por mostrar como as diferentes
linhagens do vírus da zika provocam reações díspares do sistema imunológico, o
que ajuda a explicar porquê a cepa asiática se tornou epidêmica. Além disso, a
revelação de como o vírus “dribla” as defesas do organismo deverá ter impacto
nas pesquisas e desenvolvimento de vacinas e tratamentos contra a doença.
—
Qualquer vírus que possa manipular o sistema imunológico é mais preocupante,
tanto do ponto de vista epidemiológico quanto no desenvolvimento de vacinas e
tratamentos — diz. — Este artigo mostra que o vírus da zika de fato tem esta
capacidade, o que serve como alerta de que precisamos acelerar a construção de
um arsenal contra ele. Esta relativa “calmaria” após o fim do pior da epidemia
é a hora para a gente desenvolver estas armas, pois o vírus ainda está
circulando por aí e pode voltar a qualquer momento.
De
acordo com Tanuri, uma das opções a ser levada adiante é a criação de remédios
que diminuam a carga viral do zika no organismo, nos moldes dos usados nos
coquetéis contra o HIV, de modo a evitar que o vírus atinja os fetos. Já com
relação à vacina, o próprio líder da pesquisa, Jae Jung, lembra que todas
alternativas em testes até agora não incluem grávidas em seus ensaios clínicos
devido aos riscos do vírus para o bebê. Mas esta, segundo ele, é a população
que mais pode se beneficiar, o que faz com que seja necessária a avaliação de
sua eficácia também nelas, já que a atividade de seu sistema imunológico é
diferente.
—
As vacinas em desenvolvimento para o vírus da zika parecem ser altamente
eficazes, mas elas estão sendo testadas em mulheres que não estão grávidas, que
têm uma química corporal diferente das mulheres grávidas — justifica. — É
factível que a dosagem recomendada da vacina, embora eficaz para mulheres não
grávidas, não seja potente suficiente para as mulheres grávidas pois seus
corpos são mais tolerantes aos vírus.
Fonte: Jornal
O Globo