As populações americanas de um dos
principais parasitas causadores da malária, Plasmodium vivax, são
tão diversas geneticamente quanto as encontradas no Sudeste Asiático, onde a
transmissão da malária é muito mais intensa.
Como o plasmódio humano mais comum,
o Plasmodium falciparum, apresenta baixa diversidade genética nas
Américas quando comparado com outras regiões, achava-se que o mesmo ocorreria
com o P. vivax. Mas não foi o que mostrou um estudo feito por
pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em colaboração com colegas do
Rio de Janeiro, Uruguai e Reino Unido. Os resultados foram publicados na revista PLOS Neglected Tropical
Diseases.
“Descobrir que as populações de P.
vivax nas Américas são mais diversas do que as do Plasmodium
falciparum foi surpreendente. Se aceitarmos a hipótese de que tanto
o P. falciparum como o P. vivax chegaram às
Américas após a colonização europeia, a expectativa seria encontrar níveis de
diversidade genética relativamente semelhantes nas duas espécies, que teriam
passado por um intenso gargalo populacional durante a sua ‘migração’ para o
Novo Mundo. Mas não é isso o que ocorre”, disse o coordenador da pesquisa,
Marcelo Urbano Ferreira, professor do Departamento de Parasitologia do
Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.
Ao chegar ao continente americano,
o P. vivax parece ter retido muito mais da diversidade preexistente
(que havia na África, por exemplo) do que o P. falciparum.
“Uma explicação possível é que as
populações de P. vivax que chegaram às Américas tiveram uma
origem geográfica mais ampla, incluindo África, Europa e talvez Ásia, do que as
populações de P. falciparum que recebemos, que são
predominantemente africanas, mas isso ainda precisa ser demonstrado”, disse
Urbano Ferreira.
O estudo foi feito a partir da
análise de nove genomas do parasita P. vivax coletados no
noroeste do Brasil, país que responde por 37% dos casos de malária no
continente americano. Os nove sequenciamentos foram comparados às sequências
existentes de outros 84 parasitas coletados no Brasil e em outros países.
A diversidade genética da população
de P. vivax no Brasil se mostrou semelhante às do Camboja e da
Tailândia, países do Sudeste Asiático em que a transmissão de malária é, em
média, mais elevada do que no Brasil.
O trabalho incluiu a coleta de
amostras de sangue nas localidades de Acrelândia, no leste do Acre, e
Remansinho, no sul do Amazonas, próximas às fronteiras com o Peru e a Bolívia.
Nas amostras de nove adultos foi constatada a presença de P. vivax.
A partir das amostras, os
protozoários foram separados, seu DNA isolado e parcialmente sequenciado. A
esses dados foram acrescentadas no universo de amostragem sequências nucleares
genômicas de outras 75 amostras preexistentes de parasitas provenientes do
Brasil (2), Peru (23), Colômbia (31) e México (19), obtidas em bancos internacionais
de genes.
Todo esse material nuclear foi
comparado à procura de marcadores de diferenciação (no caso, polimorfismos de
nucleotídeo simples, ou SNPs) capazes de estabelecer a diversidade entre os
protozoários amostrados.
O estudo apontou que a diversidade
genética encontrada na população de P. vivax no Brasil é
similar à encontrada em outros países das Américas.
O estudo do genoma nuclear de P.
vivax foi feito com três populações americanas. “Por enquanto, temos
dados genômicos de parasitos de somente quatro países das Américas. Mesmo em
cada país, não temos uma amostragem ampla. Certamente há um grande número de
linhagens circulando nas Américas, muito além de três, mas por causa da intensa
recombinação genética a que a maioria delas está exposta essas linhagens não
são estáveis. A recombinação genética logo gera novas variantes ‘recombinantes’
que circulam no continente. Muito provavelmente, não temos linhagens clonais
sendo transmitidas ao longo de várias gerações de parasitos”, disse Urbano
Ferreira.
O estudo da diversidade genética
de P. vivax nas Américas busca pistas sobre a origem da
diversas linhagens, ou populações, americanas.
“É uma pesquisa em andamento. Por
enquanto, os dados disponíveis [tanto nossos como de outros grupos de pesquisa]
sugerem que as Américas receberam populações de P. vivax tanto
da África como da Europa e Ásia. Há também a possibilidade de uma contribuição
da Oceania, a ser ainda confirmada. Os genomas mitocondriais são muito úteis
nesses estudos, mas certamente precisamos de mais genomas nucleares completos
para fazer inferências mais definitivas”, disse Urbano Ferreira.
Linhagens muito antigas podem ter
chegado às Américas e, dependendo da magnitude da migração (quantos indivíduos
migraram), podem ter perdido pouca diversidade nesse trajeto.
Entre as possíveis regiões de origem
do plasmódio, há linhagens que podem ter sido trazidas ao Brasil por imigrantes
italianos e espanhóis no século 19, onde a malária era endêmica até meados do
século 20.
“A diversidade de P. vivax no
Brasil é grande, dado o histórico de mais de 300 anos de tráfico negreiro, uma
das fontes de entrada do parasita no país. Mas no Brasil houve muitas entradas
em tempos diferentes, como quando do início da chegada dos imigrantes no século
19”, disse Thaís Crippa de Oliveira, doutoranda no ICB-USP e primeira autora do
artigo publicado na PLOS Neglected Tropical Diseases.
Segundo Ferreira, seria simplista
supor que, necessariamente, toda a diversidade atual nas populações de
plasmódios das Américas tenha sido gerada nos últimos 500 anos. Isso só seria
verificado caso a migração envolvesse um “efeito do fundador” – ou seja, se
somente uma ou pouquíssimas linhagens tivessem chegado aqui e se todos os
plasmódios atualmente existentes no continente fossem descendentes dessas
primeiras linhagens.
Os pesquisadores estão trabalhando
atualmente com uma nova amostra de plasmódios, colhidos por Oliveira em uma
única comunidade ao longo de 12 meses de estudo.
A análise dos genomas completos
desses parasitos permitirá avaliar os níveis de variação genética de populações
de P. vivax ao longo do tempo e inferir alguns mecanismos –
por exemplo, migração e recombinação – que contribuem para essa variação.
O artigo Genome-wide
diversity and differentiation in New World populations of the human malaria
parasite Plasmodium vivax, de Thais C. de Oliveira, Priscila T. Rodrigues,
Maria José Menezes, Raquel M. Gonçalves-Lopes, Melissa S. Bastos, Nathália F.
Lima, Susana Barbosa, Alexandra L. Gerber, Guilherme Loss de Morais, Luisa
Berná, Jody Phelan, Carlos Robello, Ana Tereza R. de Vasconcelos, João Marcelo
P. Alves e Marcelo U. Ferreira, pode ser lido em https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0005824.
Peter Moon | Agência FAPESP