Até 2030, é possível que o
Brasil e o mundo consigam conter a hepatite C, um dos maiores problemas de
saúde pública globais, com mais de 71 milhões de pessoas infectadas (700 mil
delas no Brasil) e 400 mil mortes por ano no planeta.
O motivo principal disso é um
grande avanço da medicina: tratamentos com novos antivirais, mais efetivos, de
curta duração e com menos efeitos colaterais, têm ganhado escala em diversos
países e levado à cura em até 90% dos casos. O Ministério da Saúde universalizou
há um mês o acesso a esses novos medicamentos através do Sistema Único de Saúde (SUS),
medida que pode ser fundamental para o Brasil alcançar a meta da Organização
Mundial da Saúde (OMS) de controle da infecção - embora
especialista diga que a universalização ainda precisa ocorrer na prática.
Até o início desta década, os
únicos tratamentos disponíveis, com uso combinado de um antiviral mais antigo
(ribavirina) e interferon (modulador da resposta imunológica), podiam demorar
até um ano, com muitos efeitos colaterais, taxas de sucesso relativamente
baixas (cerca de 50%) e risco de retorno da infecção quando os medicamentos
eram interrompidos.
Os novos antivirais,
conhecidos como DAAs (antivirais de ação direta), usados isoladamente ou em
associação, ampliaram o arsenal contra o HCV, encurtaram o tempo de tratamento
(para 8 a 12 semanas), têm efeitos colaterais toleráveis e atingem taxas de
sucesso na casa dos 90%-95%, mesmo em estágios mais avançados de doença
hepática. Até pacientes que antes não tinham indicação para um transplante de
fígado (pelo alto risco de recorrência da hepatite C) passaram a ter suas
chances reavaliadas.
Os mais novos DAAs prometem
ser ainda mais efetivos, simplificando o tratamento e resolvendo as infecções
causadas por qualquer um dos genótipos do vírus (com a geração anterior havia a
necessidade de testes genéticos para definir qual droga deveria ser empregada
contra cada tipo de HCV).
Além de curar as pessoas, os
DAAs trouxeram a esperança da redução significativa do risco de transmissão da
hepatite C, o que levou os especialistas a considerarem a perspectiva de uma
eventual eliminação de novas infecções pelo HCV.
Segundo Hugo Cheinquer,
professor titular de hepatologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
eliminar não equivale a erradicar o vírus, o que dependeria provavelmente de
uma vacina (que não existe) aplicada na maior parte da população. Eliminar o
vírus até 2030, de acordo com as metas da OMS, significa reduzir em até 90% a
chance de novas infecções e a diminuição em até 65% do número de mortes
causadas pela hepatite C.
Um dos grandes desafios hoje é
identificar quem possui a doença, mas desconhece sua condição, já que ela pode
permanecer "silenciosa" por décadas. Outra barreira é garantir que o
tratamento seja, de fato, acessível para todos os infectados, já que o custo
elevado e a logística de distribuição dos medicamentos podem ser limites
importantes para os sobrecarregados sistemas de saúde pública dos países em
desenvolvimento.
Maior parte dos portadores se
infectou em transfusões realizadas antes de haver testes específicos ou ao
compartilhar agulhas e seringas
A infecção pelos vírus da
hepatite C (HCV) é transmitida basicamente pelo sangue. A maior parte dos
portadores se infectou em transfusões realizadas antes de 1992 (quando ainda
não existiam testes específicos para detecção do vírus nos bancos de sangue) ou
ao compartilhar agulhas e seringas, principalmente entre usuários de drogas
injetáveis. Em quase um terço dos casos se desconhece a origem da infecção
(transmissão na gestação, sexo sem proteção ou uso de materiais domésticos ou
hospitalares com sangue contaminado são algumas possibilidades).
Cerca de 20% dos infectados se
curam espontaneamente, mas os demais 80% evoluem para uma infecção crônica
(mais ou menos grave) que leva até 20 anos para se manifestar. O vírus provoca
um processo inflamatório no fígado que pode causar danos sérios antes de ser
detectado.
Em teoria, quanto mais cedo a
detecção e o tratamento, maiores as chances de cura, com menos impactos para a
saúde. A doença é hoje uma das principais responsáveis pela insuficiência
hepática, cirrose, câncer do fígado e a necessidade de transplante do
órgão. Cerca de 20% das infecções crônicas evoluem para cirrose e, de 1% a 5%
para câncer de fígado.
De acordo com a Organização
Mundial da Saúde (OMS), as hepatites virais (incluindo as hepatites A,B,C,D e
E) mataram 1,4 milhão de pessoas em 2016, mais do que malária, tuberculose ou
aids.
Nos EUA, por exemplo, de
acordo com dados dos Centros de Controle de Doenças (CDC), a hepatite C atinge
hoje 4,1 milhões de pessoas (quase 4 vezes o número de portadores do HIV,
causador da aids), mata mais do que qualquer outra infecção e o número de casos
só vem aumentado, principalmente em função da epidemia de drogas opioides.
Dados do Ministério da
Saúde estimam que 700 mil pessoas estão cronicamente infectadas com o
HCV. Aproximadamente dois terços desse montante não sabem que têm a doença.
Foram realizados 319 mil diagnósticos de 1999 até 2016 e, cerca de 67 mil
pessoas já receberam os novos tratamentos contra hepatite C.
De acordo com Cheinquer,
descontados os casos tratados e os óbitos no período, cerca de 100 mil pessoas
estão hoje na "fila de espera" dos novos medicamentos no SUS, além
daqueles que ainda vão ser identificados. O plano para atingir a meta da OMS
até 2030 prevê o tratamento de cerca de 600 mil pessoas.
Um modelo matemático da
eliminação da hepatite C, apresentado pelo Ministério da Saúde no
último Congresso Internacional do Fígado, que aconteceu em Paris no início de
abril, mostra que um esforço concentrado do país, a partir de 2018, para
aumentar a detecção de casos nas populações de alta prevalência e a ampliação
do acesso aos novos medicamentos, tornaria possível alcançar os objetivos da
OMS.
Segundo Edison Parise,
presidente do Instituto Brasileiro do Fígado, da Sociedade Brasileira de
Hepatologia, a boa notícia é que no mês passado, o tratamento no Brasil, antes
restrito a pacientes com doença avançada (apenas graus 3 e 4 de fibrose no
fígado), foi universalizado para todos pacientes que testem positividade
para o vírus, independentemente da gravidade da doença.
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Nova leva de medicamentos tem
eficácia muito superior contra o vírus da hepatite C
Cheinquer também avalia que
universalizar o acesso no Brasil é um avanço. No entanto, ele aponta uma série
de questões estruturais que podem limitar o uso dos medicamentos. "Em
diversas regiões do país, uma consulta com um especialista e a espera pelos
novos tratamentos pode levar até um ano. A lista de espera não leva em conta a
gravidade dos casos. Pacientes com a doença mais avançada, muitas vezes, não
podem esperar tanto tempo. Quem tem recursos pode até importar os antivirais,
mas quem não tem condições financeiras vai ter que aguardar. É importante tirar
a universalização do papel e colocá-la em prática", diz ele.
O Ministério da Saúde informa
que os medicamentos que já estavam disponíveis vêm sendo distribuídos
regularmente para as unidades de alto custo, porém os que foram recentemente
incorporados ao SUS, no protocolo revisado de 2018, têm prazo de 180 dias para
chegarem às unidades. Quanto à demora no atendimento, nas regiões com problemas
locais, a capacidade poderia ser expandida recorrendo à atenção básica, e não
exclusivamente aos serviços de assistência especializada.
Outra questão central, segundo
Parise, é identificar quem ainda está fora da fila de espera.
"No mundo todo houve uma
recontagem dos casos prováveis de hepatite. Certamente as prevalências antigas
superestimaram o número de portadores da doença. No Brasil não foi diferente.
Hoje estamos falando em 0,5% a 0,6% da população. Acreditamos que ainda reste
um considerável contingente de pacientes a ser detectado, e que esses casos se
concentrem em indivíduos acima de 40-45 anos, que devem ser os pacientes
testados prioritariamente. Outras populações de risco incluem usuários de
drogas injetáveis, encarcerados e pacientes submetidos a hemodiálise",
afirma.
Ainda segundo o Ministério
da Saúde, entre as estratégias para ampliação do diagnóstico e tratamento
será necessário realizar nos próximos anos 9,5 milhões testes rápidos para
hepatite C e tratar 50 mil pacientes anualmente.
Em janeiro, o NHS (sistema
público de saúde do Reino Unido) anunciou que pretende eliminar a hepatite C
até 2025, cinco anos antes da meta definida pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), o que tornaria o país o pioneiro em dar uma resposta efetiva à eliminação
do HCV.
Para isso, o NHS convocou os
laboratórios produtores dos novos tratamentos para discutir uma redução no
custo das novas tecnologias antivirais. Parte do acordo envolve auxílio da
indústria farmacêutica na identificação de potenciais pacientes.
Mais do que tratar, para o
NHS, o problema central é identificar os portadores, principalmente as pessoas
que se infectaram há muito tempo e os grupos sociais que tendem a ficar mais
longe dor serviços de saúde, como os usuários de drogas. Testes rápidos (de
sangue ou saliva) que possam ser realizados em qualquer lugar (não apenas em
laboratórios ou postos de saúde) e testes de autoaplicação (como os que existem
hoje para diagnosticar o HIV) poderiam trazer mais pessoas para o tratamento.
O Egito, país com a maior
prevalência de hepatite C do mundo (7% da população de 15 a 59 anos tem uma
infecção ativa pelo HCV), iniciou já em 2015 um extenso programa de combate à
doença. A epidemia no país foi desencadeada nos anos 1950, após um programa
para tratamento em massa da esquistossomose, que foi feito sem o uso de agulhas
e seringas devidamente esterilizadas.
Acredita-se que mais de 1,3
milhão de pessoas já foram curadas. O programa egípcio envolveu a criação de um
site, onde as pessoas infectadas podem se inscrever para receber o tratamento
gratuitamente, negociação com a indústria farmacêutica para revisão do preço
dos antivirais disponíveis e, finalmente, a produção local de um dos
medicamentos, o que reduziu o custo total do tratamento para menos de 1% do valor
praticado nos países desenvolvidos.
A lista de espera para
tratamento foi zerada em 2016 e, os esforços das autoridades de saúde se
concentram agora em identificar outros possíveis 3 milhões de portadores do
vírus, que não sabem que são portadores.
Egito, Austrália, França,
Geórgia, Alemanha, Islândia, Holanda, Japão e Qatar são os nove países
considerados exemplos nas estratégias de combate à hepatite e que devem atingir
as metas da OMS até 2030.
Havendo vontade política de
todas esferas de poder e coordenação das ações, o Brasil, quem sabe, em breve,
pode fazer parte dessa lista.
*Jairo Bouer é
médico-psiquiatra pela Universidade de São Paulo (USP), biólogo pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestrando em antropologia
evolutiva na University College London (UCL). Colaborou com os principais
veículos de mídia no Brasil, como Rede Globo, CBN, Folha de S. Paulo, Estado de
São Paulo, Revista Época e UOL.
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