Na agitada rotina de bares e
baladas de Nova York, uma cena é cada vez mais comum: jovens levam consigo um
discreto frasco de spray nasal, que nada tem a ver com o combate a alergias.
Trata-se de um remédio capaz de reverter overdoses que já superam acidentes de
carro como a principal causa de morte acidental nos EUA.
Velha conhecida dos
profissionais de saúde, a naloxona, desenvolvida pela Sankyo, está no mercado
desde a década de 1970 na forma de injeção, mas se popularizou entre a população
leiga nos últimos três anos, com o lançamento das versões nasal e de aplicação
subcutânea.
Mais conhecida por Narcan,
nome da versão comercial mais popular, o uso de naloxona vem se expandindo nos
EUA junto com o uso cada vez maior de opiáceos e opioides. Em 2017, o
Departamento de Saúde americano declarou a questão como um problema de saúde
pública no país.
Os opiáceos são derivados do
ópio, obtido da papoula, com ação analgésica e depressora do sistema nervoso
central, como a morfina e a heroína.
Os opioides, por sua vez, são
produtos sintéticos totalmente produzidos em laboratório, mas com atuação
similar à dos opiáceos. Entre os mais populares estão anestésicos potentes, mas
que são usados frequentemente como drogas recreativas.
Em 2016,116 pessoas morreram
por dia nos EUA em decorrência do abuso dessas substâncias. A naloxona age
bloqueando a interação com os receptores do cérebro, neutralizando efeitos
colaterais mais perigosos da overdose, como a depressão respiratória e paradas
cardíacas. A substância funciona quase que instantaneamente, com poucos efeitos
colaterais.
A droga também tem a vantagem
de não causar danos se for administrada em alguém que não esteja sofrendo de
overdose de opiáceos.
Diante deste quadro, o uso da
naloxona fora do ambiente hospitalar passou a ser incentivado. As ações de
disseminação vão desde grupos de redução de danos até governos estaduais e
prefeituras.
Segundo a revista New England
Journal of Medicine, mais de 40 estados americanos já têm leis que facilitam o
acesso à naloxona.
Em Nova York, a prefeitura
lançou a campanha "Salve uma Vida", em que incentiva que os moradores
levem seringas com a droga. Na cidade, há mais de 700 farmácias que vendem o
Narcan sem receita médica. Além disso, há pontos de distribuição gratuita.
Em abril deste ano, o
principal porta-voz em questões de saúde pública no governo federal dos Estados
Unidos emitiu uma orientação nacional exortando que mais americanos tenham
acesso e aprendam a usar a naloxona.
O último aviso do tipo feito
por um porta-voz havia ocorrido em 2005, quando Richard Carmona aconselhou
mulheres a vetarem completa mente o consumo de álcool durante a
gravidez.
Aprovado pela FDA (agência
americana que regula medicamentos e alimentos) no fim de 2015, o spray de
Narcan abocanhou mais de 33% do mercado de naloxona em menos de um ano. Um
pacote com dois sprays da substância é vendido por US$ 150 (cerca de R$ 450).
Atualmente, há cinco
apresentações de naloxona competindo no mercado americano. Outro destaque é o
Eyzio, aprovado em 2014, que funciona de forma muito parecida com uma caneta
aplicadora de insulina.
A popularização ajudou a
catapultar as vendas totais de naloxona, que passaram de US$ 21,3 milhões (R$
83,3 milhões) em 2014 para US$ 274,1 milhões (R$ 1,07 bilhão) em 2016, de
acordo com a consultoria IQVIA. Uma alta de quase 1.200% no período.
O Narcan teria sido usado para
salvar a vida da cantora Demi Lovato durante seu recente episódio de overdose.
De acordo com diversas fontes da imprensa americana, um amigo da estrela pop
administrou a substância, que ele levava para casos de emergência.
"É claro que o uso da
naloxona em ambiente hospitalar seria o ideal, mas o uso disseminado tem tido
resultados muito positivos nos EUA. É o velho binômio entre os benefícios e as
consequências" diz o professor de toxicologia da Unicamp (Universidade
Estadual de Campinas) José Luiz da Costa.
A popularização no Narcan
levou a alta de preços e, muitas vezes, à indisponibilidade do produto.
Pesquisadores americanos também afirmam que a facilidade de ter uma espécie de
antídoto para a overdose pode levar a um aumento do consumo de heroína e outras
drogas, uma vez que a naloxona daria uma aparência de segurança ao consumo de
entorpecentes.
No Brasil, o spray nasal de
naloxona não é aprovado, segundo a Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária), embora a versão injetável já seja usada no país há
décadas.
O quadro de consumo de
opioides e opiáceos por aqui, no entanto, é bastante diferente do que existe
nos EUA.
"É basicamente uma
questão de preço. A heroína chega muito cara ao Brasil, os traficantes não têm
interesse. Por outro lado, a cocaína no país é muito mais barata do que nos EUA
ou na Europa", diz Costa.
Segundo ele, casos esporádicos
de overdose por fentanyl - um remédio para dor 50 vezes mais potente do que a
morfina, cujo uso é restrito ao ambiente hospitalar já acontecem em São Paulo.
"Como esse tipo de
overdose ainda é pouco comum, os profissionais de saúde têm de estar
atentos", afirma.
Giuliana Miranda, Folha de S.
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