Produção
do medicamente no Brasil geraria economia de R$ 1 bi ao governo São Paulo
A
farmacêutica americana Gilead está barrando a compra de um medicamento genérico
para hepatite C que geraria uma economia de cerca de R$ 1 bilhão ao ano para o
governo brasileiro.
A
Gilead produz o sofosbuvir, um antiviral que cura a hepatite C em 95% dos casos
e revolucionou o tratamento desde 2014. Antes, a terapia mais eficaz disponível
curava em apenas 50% dos casos.
Neste
ano, o Ministério da Saúde anunciou um plano para eliminar a
hepatite C até 2030, e o SUS passou a tratar todos os pacientes com os novos
antivirais, e não apenas os doentes mais graves. Mas o tratamento que usa o
sofosbuvir chega a custar R$ 35 mil por paciente no Brasil e limita número de
pessoas tratadas.
Um
convênio entre Farmanguinhos-Fiocruz e Blanver obteve registro
da Anvisa para fabricar o sofosbuvir genérico. Em tomada de
preços no início de julho no Ministério da Saúde, a Gilead ofereceu
o sofosbuvir a US$ 34,32 (R$ 140,40) por comprimido, e a Farmanguinhos ofertou
o genérico a US$ 8,50 (R$ 34,80).
Hoje,
o ministério paga US$ 6.905 (R$ 28.241) pela combinação sofosbuvir e
daclatasvir de marca. Com a nova proposta, o governo passaria a pagar US$ 1.506
(R$ 6.160), com a Fiocruz e a Bristol. Dada a meta de tratar
50 mil pessoas em 2019, isso significaria uma economia de US$ 269.961.859 (R$
1,1 bilhão) em relação aos gastos com a combinação sem o genérico.
O
departamento de hepatites do ministério solicitou em agosto a compra do
medicamento mais barato com urgência. Por causa de contestações de
farmacêuticas, não foi feita a aquisição, e o estoque de vários antivirais no
SUS acabou há meses. Há fila de 12 mil pacientes, e muitos esperam há mais de
seis meses.
O
ministério afirma que ainda não há decisão. "O processo de aquisição do
sofosbuvir foi iniciado, e todas as empresas que têm registro no Brasil poderão
participar".
"Aquilo
não foi uma tomada de preços, não houve processo de compra, estamos
questionando por que alguns produtos não foram considerados", disse o
diretor-geral da Gilead, Christian Schneider.
No
dia 28 de agosto, a Gilead enviou carta ao ministério, obtida pela Folha,
na qual pede a anulação dos resultados da reunião e oferece uma nova combinação
de drogas por um preço inferior aos genéricos.
Mas,
segundo técnicos, a oferta inclui uma droga que não funciona para todos os
vírus de hepatite e não é recomendada pela Organização Mundial da Saúde.
"Nossa
combinação é mais avançada, e os genéricos não consideram todos os
cenários", diz Schneider.
Um
grupo liderado pelos Médicos sem Fronteiras (MSF) encaminhou uma representação
ao Ministério Público acusando a Gilead de pressionar o INPI (Instituto
Nacional da Propriedade Intelectual) para conceder a patente do sofosbuvir e de
entrar com inúmeras ações judiciais para barrar o genérico.
"A
competição com genéricos pode resultar em cura mais acessível para as 700 mil
pessoas com hepatite C no país. O Brasil pode enviar uma mensagem ao mundo, com
decisões que estimulam a concorrência e permitem maior acesso a
tratamentos", diz Felipe Carvalho, da MSF.
A
Gilead solicitou registro da patente do sofosbuvir no Brasil. De 126 pedidos da
empresa, 124 foram rejeitados pelo INPI e dois estão em análise e poderiam
bloquear o genérico.
Segundo
Pedro Villardi, coordenador do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual, o
INPI indicava uma decisão negativa em relação à patente da Gilead, mas mudou
subitamente de curso este ano. A empresa entrou com uma ação judicial pedindo
reversão da decisão do INPI antes mesmo de ela sair.
Procurado,
o INPI afirma que o pedido está em exame.
"Tem
muita pressão das farmacêuticas, por isso paralisaram o processo de compra no
ministério, e o INPI mudou de curso", diz Villardi. A Gilead afirma ter
"plena convicção" de sua patente.
A
empresa faturou US$ 55 bilhões (R$ 225 bi) com remédios contra hepatite C desde
2014. Quando lançado, o tratamento com o sofosbuvir saía por US$ 84 mil (R$ 344
mil).
A
briga no país para impedir a fabricação do genérico contra hepatite C,
comparada por ativistas à batalha pelos medicamentos contra o HIV, divide
sociedades médicas e inclui até fake news.
A
assessoria de imprensa da Gilead, a Fundamento Comunicação, circulou no mês
passado um press release que saiu no site de uma revista com o título:
"Adoção do medicamento genérico para Hepatite C pode sair mais caro do que
tratamento convencional".
No
texto, Carlos Varaldo, presidente do Grupo Otimismo de Apoio ao Portador de
Hepatite, dizia que os genéricos gerariam um aumento de gasto de R$ 48 milhões
em relação ao de marca.
A
Fundamento afirma que fez o release para o grupo Otimismo, e não para a Gilead.
A Gilead é uma das principais financiadoras do Grupo Otimismo. Em prestações de
contas em 2014, 2015 e 2016, Varaldo declarou que o grupo recebeu um total de
R$ 1,2 milhão das farmacêuticas Gilead, Roche, Janssen, MSD e BMS. Ele diz não
ver conflito de interesses.
"Eu
coloco tudo na prestação de contas, como realizar eventos enormes sem apoio da
indústria? Se não fossem as farmacêuticas, estaríamos tratando hepatite C com
chá de ervas", afirma o ativista.
Indagada,
a Gilead disse que não financiou o release e não tem nada a ver com isso.
"A Gilead é patrocinadora do Grupo Otimismo de forma totalmente
transparente."
A
Sociedade Brasileira de Infectologia enviou carta ao ministério questionando a
qualidade e segurança do genérico. "Além disso, as novas drogas são mais
fáceis de tomar, mais avançadas e reduzem o tempo de tratamento, seria um
retrocesso não usá-las", disse Sergio Cimerman, presidente da entidade.
Mas
Marcelo Simão Ferreira, presidente do comitê de hepatites da sociedade, é a
favor dos genéricos e do uso da combinação proposta. "Não temos dúvida de
que a combinação em estudo é muito eficaz", diz.
Paulo
Abraão, que era diretor do comitê da SBI, pediu afastamento por não concordar
com o posicionamento contra o genérico. Já a Fiocruz afirma
que seu sofosbuvir teve a bioequivalência testada e que tem capacidade para
produzi-lo, como fez com os genéricos anti-HIV.
A
Gilead também questionou junto ao TCU a parceria entre Fiocruz e
Blanver. Em acórdão de agosto, o tribunal pede que a parceria seja
descontinuada para novos medicamentos, mas diz que "não interfere na
pesquisa e produção do sofosbuvir".
A
luta contra os genéricos para hepatite C é mundial. Na Colômbia, a proposta de
regular o preço do sofosbuvir foi citada pela Pharma, o lobby das farmacêuticas
dos EUA, para barrar a entrada da Colômbia na OCDE. Mesmo assim, o país acabou
admitido.
No
Chile, o governo de Michele Bachelet havia anunciado que iria pedir o
licenciamento compulsório (quebra da patente) do medicamento. Com a posse de
Sebastian Piñera, o plano foi engavetado. Mas, em agosto, o governo voltou a
considerar. A Argentina não concedeu a patente à Gilead e fabrica genéricos.
No
Egito, foi negada a patente do sofosbuvir à farmacêutica, que fez um acordo e
passou a fornecer o remédio a preço reduzido. O governo passou a fabricar
genéricos e já tratou 1 milhão de pacientes. No Brasil, foram tratados 75 mil
pacientes.
Na
Índia, a Gilead fez um acordo com as fabricantes de genéricos, que permite que
elas fabriquem pagando uma licença, mas proíbe-as de exportar para países de
renda média com muitos casos da doença, como o Brasil.
Entenda
a disputa pelos medicamentos
Como é o tratamento para
hepatite C? Atualmente, no SUS,
entre outros medicamentos oferecidos, há uma combinação de duas drogas:
sofosbuvir, da farmacêutica americana Gilead, e daclatasvir, de outra empresa
O que está em disputa? A Farmanguinhos (da Fiocruz), em
convênio com a Blanver, recebeu da Anvisa a autorização para
produzir o sofosbuvir genérico. Como o remédio brasileiro custa bem menos que o
americano, o Ministério da Saúde estuda adotá-lo no SUS.
Entretanto, a Gilead tenta barrar a compra da droga nacional
A Gilead tem patente para o
sofosbuvir no Brasil? Não. A
farmacêutica entrou com 126 pedidos no Instituto Nacional da Propriedade
Industrial, mas 124 foram rejeitados. Ainda há dois em análise. Um desses
pedidos, se aceito, proibiria a fabricação de genéricos por outras empresas ou
instituições
O sofosbuvir é
eficiente? Sim. O medicamento,
que é administrado com outras drogas, tem índice de cura de 95%, enquanto
outros usados anteriormente chegavam a 50%. O remédio também encurta o
tratamento e reduz os efeitos colaterais
E o genérico brasileiro? O medicamento produzido pela Fiocruz foi
registrado pela Anvisa e passou por testes de bioequivalência,
que indicam que a droga tem o mesmo efeito da produzida pela Gilead
O que dizem os médicos? Há diferentes opiniões. A Sociedade Brasileira de
Infectologia (SBI) é contra o genérico e diz que há remédios mais novos que
deveriam ser considerados. O diretor do comitê de hepatites virais da entidade
pediu afastamento por não concordar com essa posição, e há outras vozes
dissidentes na SBI. Já os Médicos Sem Fronteiras acusam a Gilead de pressionar
médicos e governo. Para eles, a compra do genérico é mais vantajosa, visto que
o medicamento é efetivo e mais acessível
O que acontece em outros
países? A patente foi
concedida no Chile, mas o governo avalia quebrá-la; foi negada na Argentina e
no Egito e está em análise na União Europeia. Na Índia, outras empresas podem
fabricar os genéricos, mas elas pagam uma taxa à Gilead e a exportação para
países de renda média com grande número de pacientes é proibida
Patrícia
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