Nos últimos anos, o número de processos contra
médicos e profissionais da saúde tem aumentado de forma assustadora. Há aqueles
que acreditam que isso decorre do tratamento ineficaz e de baixa qualidade.
Entretanto, outros acreditam que a justiça foi banalizada pelos pacientes.
Esse é um cenário que se tornou cotidiano quando
tratamos da diária da prática médica e a evolução da relação do médico com seu
paciente vem ganhando contornos incomuns que repercutem sensivelmente na esfera
dos direitos subjetivos dos sujeitos envolvidos no ato de “dar” serviços de
saúde e de recebê-los.
De um lado, temos o profissional da saúde que,
inequivocamente, não mais se encontra – ao menos do ponto de vista fático –
numa relação de hierarquia de sobreposição (paternalista) em relação a seu
paciente e que, muitas vezes, está vinculado a contratos coligados e de
natureza complexa, nos quais se verifica uma produção em massa, com
remunerações aquém do desejado por esses profissionais, cujos efeitos são
invariavelmente maléficos ao sistema de saúde como um todo.
Do outro, temos o paciente “moderno”, que
tem acesso a ferramentas de pesquisa das mais variadas (com a internet,
smartphones e o Google, dentre outras ferramentas de busca e Apps) e
que exige cada vez mais informações específicas a respeito do seu estado de
saúde e das alternativas possíveis de tratamento – além de “pensar” que entende
os aspectos médico científicos de sua doença.
O ponto é que essa nova relação médica-paciente tem
assoberbado o Poder Judiciário com novas ações de erro médico.
Conforme relatório de Judicialização da saúde em números de 2017,
produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), encontramos um número
assustador de ações ajuizadas em razão de “erros médicos”, que chegaram a um
total de 57.739, o que perfaz um número 158 demandas
versando sobre erro médico ajuizadas diariamente em nosso país, o que indica o
ajuizamento 6,5 ações por erro médico a cada hora.
Recentemente, foram disponibilizados os novos
números da judicialização da saúde no Brasil, para 2018, por meio
da 14ª edição do relatório Justiça em Números, do Conselho
Nacional de Justiça.
Já no que se refere ao erro médico, houve um
aumento considerável do número de ações, que passou de 57.739 para 83.728,
o que representa, aproximadamente, 230 demandas versando sobre
erro médico ajuizadas diariamente em nosso país. E um aumento de 6,5 ações
por erro médico a cada hora, para quase 9,6 ações atualmente.
É neste contexto normativo e social que o
profissional da medicina se insere, atuando em área particularmente vulnerável
a acusações, sejam elas civis, administrativas, ético-profissionais e/ou
criminais, vendo-se cercado de riscos potenciais, derivados de suas ações ou
omissões, e contando com a carga adicional de lidar com ambientes estressantes
(hospitais públicos sucateados) e pacientes, muitas vezes, pouco colaborativos.
Assim, a aplicação do compliance na
profissão médica pode municiar os profissionais e empresas da saúde para que
estejam aptos a melhor sustentar a correição de sua atuação, servindo de apoio
à sua defesa em possíveis reclamações e denúncias. Isso é relevante porque os
erros médicos inserem-se num contexto dinâmico, ocorrendo, principalmente,
devido a falhas multifatoriais e inevitáveis.
Se a ética da organização não estiver correta, a
cultura também nunca estará e a ética e a cultura formam rotinas (hábitos) e
padrões1, com impulsionamento dos profissionais e
organizações da saúde. Logo, a cultura é a personalidade de uma empresa e ela
manifesta para o público qual a verdadeira identidade de uma
organização; e quais as situações que são importantes e relevantes para a
empresa (médicos, clínicas e hospitais).
Destaca-se que não se deve aplicar uma estrutura
de Compliance única para toda e qualquer empresa, sob pena de
ineficiência, pois cada empresa terá um tempo próprio de preparação para
receber e desenvolver o referido sistema.2 Assim, faz-se cada vez mais necessário
que os médicos, clínicas e hospitais adotem posturas preventivas como forma de
gerenciar e minimizar o risco3 de ações judiciais na atividade
médico-hospitalar. Além disso, os próprios médicos e os administradores de
empresas da saúde precisam saber como são vistos pela legislação Brasileira e
quais suas responsabilidades jurídicas.
Como dito, há uma imputação generalizada e
indiscriminada de erro do atuar e é notório que essa generalização se avoluma
para toda a classe e estende-se em todo o atuar médico. Assim, não é surpresa
que a maioria dos pacientes passam a duvidar dos médicos e de seu compromisso
com a beneficência e com o princípio da justiça e, mais grave ainda, fica em
jogo a própria credibilidade da medicina brasileira. E as alegações de “erro
médico” custam ao setor de saúde, além de dinheiro, danos à reputação de um
médico, clínica ou de um hospital.
Por oportuno, devemos lembrar que vários
profissionais da saúde desconhecem as regras impostas pelo Ordenamento legal,
já que as faculdades de medicina não educam o médico para lidar com esta
realidade.
Dados de 2016 do Anuário da Segurança
Assistencial Hospitalar no Brasil, do Instituto de Estudos
de Saúde Suplementar (IESS), revelaram que, em média, 829 brasileiros
morreram por dia em hospitais devido a erros e falhas que poderiam ser
evitados. Diante desses dados, esses erros hospitalares, alcançou a marca de 2ª
à 5ª maior causa de morte no país.
Com efeito, devemos entender que essa banalização
de processos contra médicos e profissionais da saúde é decorrente de alguns
motivos. Um deles é a confusão que os pacientes fazem entre o que é erro médico
e mau resultado4/iatrogenia/resultado adverso previsível e
também pela necessidade do paciente de “encontrar” um culpado, seja pela
existência de seu problema de saúde ou por insucesso do tratamento.
Importante mencionar que a insatisfação decorrente
de um tratamento, por si só, não gera responsabilidade jurídica, pois os
tratamentos de saúde, em tese, são obrigação de meio e não de resultado
(responsabilidade objetiva). Ainda assim, pacientes e familiares meramente
insatisfeitos ingressam na Justiça para tentar conseguir uma reparação
pecuniária.
Isso também ocorre pela facilidade de acesso a
informações médicas pelo paciente e pela pressão da mídia sobre os casos de
saúde; além da facilidade de acesso à justiça e aos deferimentos de gratuidade
de justiça para a maioria dos pacientes que processam médicos.
Portanto, o médico atualmente se depara com uma
realidade na qual o gerenciamento dos riscos médico-jurídicos já se faz muito
necessário e ele deve estar preparado antes que o evento indesejado aconteça. O
bom médico, diligente, deve conhecer os novos paradigmas e as atuais nuances
que fazem “simbiose” com a profissão, sempre com a intenção de melhorar o
desenvolvimento de sua atividade e observando os princípios da bioética.
Contudo, não existem fórmulas milagrosas que possam
evitar uma demanda judicial ou ético-profissional, até porque o ser humano é
falível e o relacionamento interpessoal entre paciente e profissional é
imprevisível.
Nesse sentido, sem um planejamento adequado5 para o bom desenvolvimento do trabalho
interdisciplinar e o crescimento das empresas de serviços médicos, o percentual
de ocorrência de erros e insucesso nas defesas aumenta de forma considerável.
Não obstante, o uso desse instrumento proposto
enfrenta dificuldades, inclusive para ser compreendido. Apesar de ser comum a
aplicação dos programas de compliance em organizações
empresariais de saúde, além dos grandes hospitais, entende-se que os
procedimentos de controle de uso regular nas instituições de saúde sejam
suficientes para lidar com os frequentes problemas decorrentes de acusações de
imperícia, imprudência e negligência (culpa) na atividade médica. Mas não são!
E por uma simples razão; a mentalidade norteadora
dessas práticas visa, com raras exceções, a proteção do procedimento hospitalar
frente a fiscalizações diversas. Ou seja, é um sistema de proteção norteado
pela burocracia profissional da atividade. Por isso que o uso do compliance por
pessoas físicas/médicos/enfermeiros e todos os colaboradores tem propósito
maior, o de proteção integral da equipe de trabalho, da clínica ou hospital e
do próprio paciente.
A realidade é que não há como ter uma cultura
empresarial que impulsione uma organização, a menos que a empresa tenha uma
cultura ética fundante, embasada em uma responsabilidade social da empresa
enraizada no conceito e método do compliance, para que os
funcionários saibam “como fazer as coisas”, para que eles aproveitem seu
trabalho e não sintam a necessidade de agir de forma antiética e em
desconformidade com as normas que regulam uma categoria, trabalho ou função.
Além disso, devemos lembrar que nem sempre as
expectativas do paciente ou dos seus familiares são alcançadas, apesar do
tratamento chegar ao seu objetivo técnico/terapêutico, entendemos que não é
mais facultado ao profissional da área da saúde ater-se somente a aplicação
da boa técnica, cabe a ele, mormente, em razão da complexidade do
ser humano, enxergar o paciente como um ser de corpo e alma – precisamos
retomar a humanização da relação. Como costumamos dizer, as expectativas do
médico nem sempre são idênticas as expectativas dos pacientes. É muito comum
que o paciente crie “expectativas ilusórias”, seja em razão da falha na
comunicação, seja pela própria incapacidade de querer aceitar o que o médico
explicou (ou aceitar sua condição/doença).
Para finalizar, cumpre esclarecer que a aplicação
de rotinas legais e éticas devem ser enxergadas como medidas nobres e
fundamentais, que demonstram fidelidade e
respeito
à autodeterminação e demais direitos fundamentais dos pacientes e, como
resultado, temos pacientes satisfeitos, hospitais e médicos seguros e a redução
de “erros” e dos índices de judicialização da medicina.
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——————————————-
2 O programa de compliance deve
ser estruturado de acordo com a realidade particular da organização, as suas
circunstâncias específicas, a sua cultura, o seu tamanho, o seu setor de
atuação, o tipo de atividade por ela desenvolvido e o local da sua operação”
(COIMBRA; MANZI, 2010, p. 20).
3 “Risco legal ou regulatório relaciona-se
a não conformidade com leis, regulações e padrões de compliance que
englobam matérias como gerenciamento de segregação de função, conflitos de
interesse, adequação na venda dos produtos, prevenção à lavagem de dinheiro
etc. Este arcabouço regulatório tem como fonte leis, convenções do mercado,
códigos e padrões estabelecidos por associações, órgãos regulatórios e códigos
de conduta” (COIMBRA; MANZI, 2010, p. 2).
4 Significa que uma falha ocorreu
determinando um resultado assistencial indesejado relacionado
à terapêutica ou ao diagnóstico.
5 Leia-se: Prontuário do paciente no seu
sentido mais amplo, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, Contratos,
dentre outros), nas questões de biossegurança e no conhecimento da legislação
(ética, administrativa, consumerista, civil e criminal) existente, além da
blindagem patrimonial da pessoa jurídica ou física (com societário e
sucessório).
TERTIUS
REBELO –
Advogado formado pela Universidade Potiguar em 2001, pós graduando do Curso de
Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Médico e da Saúde, pós graduado em Direito
Civil e Empresarial. Sócio do Escritório André Elali Advogados; Membro da
Comissão Especial de Direito Médico e da Saúde do Conselho Federal da OAB;
Membro da Comissão de Direito à Saúde da OAB/RN; Membro da Comitê Executivo de
Demandas da Saúde do TJRN; Membro da Comissão de Revisão do Código de Ética
Médica no RN; Membro da World Association for Medical Law; Diretor da
Associação dos Advogados do RN - AARN; Conferencista/Palestrante sobre Direito
Médico, Direito da Saúde e Bioética.