De janeiro a maio deste ano, o
Ministério da Saúde já gastou R$ 693,7 milhões, forçado por decisões judiciais.
E a estimativa é que termine 2016 com um recorde: R$ 1,6 bilhão. Em 2015, havia
sido R$ 1,2 bilhão. Em 2010, foram R$ 122,6 milhões. Números que são apenas uma
parte de uma equação bem mais complexa. Porque há vidas em jogo.
— O medicamento que meu neto toma é a vida
dele. Ainda bem que tivemos essa bênção de Deus, que nos deu a chance de ele
ter esse tratamento. Sei que o remédio é caro, mas uma criança não pode
simplesmente ser jogada fora porque tem uma doença — diz o militar aposentado
Washington Luiz de Castro Pinto, que divide os cuidados de Christian Roberto,
de 8 anos, com a mulher, Adriana Coelho, e a filha Raquel Siqueira.
Moradores de Mesquita, na
Baixada Fluminense, o casal teve a vida marcada por uma patologia rara: a
mucopolissacaridose (MPS), deficiência de causa hereditária na produção de
enzimas, que provoca reflexos em vários órgãos. Em 2003 e 2004, dois filhos
morreram em consequência da doença. O remédio importado que auxilia no
tratamento ainda não havia chegado ao Brasil. O neto Christian teve mais sorte:
usa o medicamento há quatro anos e tem evoluído bem. Apesar de aprovado no país
há pelo menos oito anos, o remédio não está disponível pelo SUS (Sistema Único
de Saúde). Custaria cerca de R$ 22 mil por mês para a família que, por conta
disso, entrou na Justiça.
— Ainda bem que o nosso caso
foi analisado por um juiz que entendeu a situação. Sei que há muitos que não
conseguem — conclui Washington.
[
Adriana Coelho segura um
frasco do remédio que precisa dar para o neto Christian, de 8 anos, portador de
uma doença que ataca a produção de enzimas: tratamento, conseguido na Justiça,
custa R$ 22 mil por mês
EMERGÊNCIA, COMPRAS CARAS
A história do casal
exemplifica uma realidade que parece não agradar a ninguém. De um lado, o Poder
Executivo se queixa dos gastos excessivos, que afetam o planejamento
orçamentário. Do outro, estão magistrados que, muitas vezes sem apoio técnico
adequado, precisam decidir do dia para a noite casos que podem ser de vida ou
morte. No meio de tudo isso, ficam os pacientes.
— O lado bom da judicialização
da saúde é que as pessoas estão indo atrás dos seus direitos. Mas, ao mesmo
tempo, temos muitas vezes nas decisões judiciais um caminho aberto para a
atuação de gestores mal-intencionados. Comprar um remédio de emergência pode
sair até cem vezes mais caro do que numa compra planejada — comenta o professor
de Direito Sanitário da Uerj Felipe Asensi, que coordenou uma pesquisa sobre o
tema, encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano passado.
Com anos de experiência
estudando a judicialização, Asensi afirma que o número de ações envolvendo
questões ligadas à saúde pode passar de um milhão por ano, levando-se em conta
casos das redes pública e privada. Como o universo é vasto, não há dados precisos
sobre o tema. Segundo ele, em levantamentos por amostragem, o perfil dos
processos mostra um predomínio de iniciativas individuais, com foco na cura, no
fornecimento de um tratamento ou de um medicamento com resultado imediato, o
que infla a carga nos tribunais. As ações coletivas, principalmente as ligadas
à prevenção, são raríssimas. Para o pesquisador, que também estudou casos
emblemáticos de sucesso, o caminho para minimizar o problema está
principalmente no diálogo entre os envolvidos:
— Quando há uma abertura de
conversa entre o gestor e o Judiciário, a tendência é de chegar a resultados
melhores. Cito um caso recente, de Lages (SC), onde havia uma demanda muito
grande por fraldas geriátricas. O que foi feito: uma parceria entre a Justiça e
a Secretaria de Saúde para a construção de uma fábrica comunitária do produto.
O número de ações despencou.
O GLOBO pediu ao Ministério da
Saúde o detalhamento dos gastos por decisão judicial, mas foi informado apenas
que “dos 20 medicamentos mais demandados, 12 já foram incorporados ao SUS”. Os
nomes não foram divulgados. Há ainda gastos com exames, equipamentos e
cirurgias, entre outros. Um levantamento realizado pela Associação da Indústria
Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), relativo a 2014, mostrava que naquele
ano 29,7% de todo o gasto com remédios decorrente de ordens judiciais foram
voltados para a compra de eculizumabe (Soliris), um anticorpo importado,
utilizado para tratamento de uma doença genética, cuja dose passa dos R$ 25
mil. O medicamento ainda não tem a autorização da Anvisa.
Para quem lida diariamente com
o drama dos pacientes, a judicialização é um mal decorrente de falhas no
sistema de saúde. Médica geneticista do Instituto Fernandes Figueira, da
Fiocruz, Dafne Horovitz conta que ficou esperançosa em 2014, quando foi
publicada uma portaria criando uma política integral de atenção às doenças
raras. Dois anos depois, porém, tudo continua só no papel:
— Seria fundamental que essa
política fosse implementada para que tivéssemos protocolos organizados
racionalmente, de diagnóstico e tratamento das doenças, com serviços de
referência. Pode parecer uma iniciativa de alto custo, mas, na prática, vai
gerar uma economia muito grande. O que acontece hoje em dia é que as pessoas
são obrigadas a entrar na Justiça como única forma de conseguir o medicamento,
e não existe uma racionalização, uma organização de estoque. A impressão que dá
é que estamos rasgando dinheiro.
A judicialização da saúde é um
tema que também preocupa o CNJ, que criou um fórum nacional voltado para o
assunto. A principal aposta do conselho é um projeto em parceria com a União
para a capacitação de núcleos técnicos nos estados, que deem suporte aos
magistrados em suas decisões. A intenção é lançar até o fim de agosto.
— A partir daí, o principal
desafio será a missão do convencimento, para que o magistrado utilize a
ferramenta que vamos disponibilizar, mas exercendo sua jurisdição de forma
livre, sem pressão ou interferência — comenta o conselheiro do CNJ, supervisor
do fórum, Arnaldo Hossepian. — Não vai ser simples; virar a chave e funcionar.
Mas vivemos um quadro complexo e que, em muitas ocasiões, tem constrangido
orçamentos, com quadrilhas usando o Poder Judiciário para ganhar dinheiro.
INCORPORAÇÃO AO SUS
Para Maria Cecília de
Oliveira, presidente da Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de
Doenças Graves (Afag), o caminho para a solução passa prioritariamente pela
incorporação ao SUS de medicamentos que só são conseguidos atualmente por
demanda judicial. Com isso, segundo ela, o governo poderia se planejar e
negociar preços, o que geraria economia:
— Não dá para concordar com
esse argumento de que, ao comprar um medicamento caro, o governo está tirando
um dinheiro que poderia atender muitos outros que precisam. Ninguém pede para
ter uma doença dessas. O que tira dinheiro da saúde mesmo é a má gestão.
O ministro da Saúde, Ricardo
Barros, diz que toda a solicitação de incorporação ao SUS é precedida de um
estudo. Sobre a implementação da política de doenças raras, Barros afirma que a
pasta vive um dilema orçamentário e que está avaliando a melhor forma de
implementação.
— A judicialização é um
problema grave, que desestrutura o planejamento. Uma das nossas apostas para
diminuir o problema é a criação de varas únicas de saúde nos estados, com
juízes com embasamento técnico e visão ampla do sistema.
UM REMÉDIO IMPAGÁVEL
Há pouco mais de dois anos, o
policial federal Marcus Vinícius da Silva Dantas não pensou duas vezes ao ter
um pedido de fornecimento de um remédio negado por uma juíza de Brasília: foi
ao fórum e só saiu de lá após conseguir falar diretamente com a magistrada. A
insistência deu resultado: ela reviu a decisão, e ele conseguiu retomar o
tratamento:
— É o que eu sempre digo:
existe, sim, pena de morte no Brasil. E ela acontece quando um juiz nega um
medicamento a uma pessoa que precisa dele para viver. Criei um grupo com
pessoas que têm a mesma doença que eu, atualmente com 200 membros. Cinco já
morreram porque o remédio não chegou em tempo hábil.
Marcus Vinícius tem uma doença
chamada Hemoglobinúria Paroxística Noturna (HPN), síndrome rara que provoca a
destruição de células sanguíneas. Começou a sentir os primeiros sintomas em
2010.
Até ter o diagnóstico correto,
passou por diversas internações, num sofrimento que parecia não ter fim. Em
2011, com a certeza da doença, entrou na Justiça para conseguir o medicamento.
Graças a uma liminar, conseguiu o remédio que fez sua vida voltar ao normal: o
eculizumabe (Soliris). Em 2014, porém, seu processo foi extinto, sem ganho de
causa, e tudo começou da estaca zero. Foi quando o policial teve que entrar com
a nova ação.
— Foram mais de mil páginas
que levei de documentos. O medo de interromper o tratamento é muito grande. A
minha vida depende desse remédio — acrescenta Marcus, de 41 anos, que conseguiu
voltar ao trabalho após consolidar o tratamento.
Importado, o Soliris custa
cerca de R$ 25 mil por dose. Como precisa de seis frascos por mês, o tratamento
de Marcus custa R$ 150 mil mensais.
Em fevereiro deste ano, o
Ministério da Saúde fez um empenho de R$ 366 milhões para a empresa Multicare
para a aquisição do medicamento, que, apesar de aprovado nos EUA e na Europa,
ainda não tem o aval da Anvisa
- Agência O Globo / Daniel
Marenco / Rubem Berta