Frascos de vários medicamentos
a base de opioides numa farmácia em Ohio; Estado está processando empresas
farmacêuticas por onda de mortes por overdose A pilha de corpos continua
aumentando no necrotério na cidade americana de Dayton, no Estado de Ohio.
“Nosso espaço refrigerado não
para de ser expandido”, diz Kent Harshbarger, legista do condado de Montgomery.
“Isso está diretamente ligado à epidemia de opioides. Não há dúvidas disso”.
Duas vezes neste ano, as instalações a cargo de Harshbarger ficaram tão cheias
que ele considerou alugar unidades de refrigeração em outros lugares.
No ritmo atual, ele deverá
realizar necrópsias em cerca de 1.800 vítimas de overdose em 30 condados do
Estado de Ohio em 2017, mais do que o dobro do total no ano passado. Ao se formar
como patologista forense em 2001, Harshbarger tinha sido treinado para lidar
com acidentes em transportes de massa, desastres naturais e surtos pandêmicos.
“Mas não para algo desse tipo,
não para uma epidemia de overdoses de drogas nessa dimensão”, diz. “Todas as
outras coisas têm um ponto final, mas isso vai se prolongar por anos”. Para
enfrentar a demanda, ele começou a fazer horas extras e contratou mais 12
funcionários, incluindo seis patologistas, o que o obrigou a buscar um aumento
nas verbas municipais.
O preço de enfrentar a onda de
mortes por overdose é apenas uma linha numa lista cada vez mais longa de custos
associados à epidemia de opiáceos nos EUA, que no mês passado foi declarada uma
emergência nacional pelo presidente Donald Trump. Mais de 183 mil americanos
morreram de overdose envolvendo um opioide receitado entre 1999 e 2015, e o
número de mortes anuais quadruplicou no mesmo período, de acordo com os Centros
para Controle e Prevenção de Doenças (CDC, em inglês) dos EUA.
A agência governamental estima
que cerca de 2,6 milhões de pessoas no país estão hoje viciadas em drogas e
medicamentos derivados do ópio, que é extraído da papoula. As estatísticas
subestimam a verdadeira escala da epidemia, porque muitas vítimas morrem não
devido a medicamentos receitados, mas por opioides ilegais, como a heroína, que
elas tendem a usar depois de se viciarem em opioides legais, receitados como
analgésicos.
O CDC contabilizou 33 mil
mortes no ano passado, que contribuem para transformar as overdoses de drogas
na principal causa mortis entre pessoas com menos de 50 anos nos EUA. Dados do
governo sugerem que o total do ano passado pode ser ainda maior.
Forças policiais dizem
precisar de mais recursos para enfrentar a onda de overdoses e o crime
relacionado às drogas; hospitais e centros de saúde estão estocando naloxona,
um antídoto caro que pode custar até US$ 470 por injeção; e agências
governamentais locais estão gastando mais com tratamento e centros
reabilitação. Apenas Ohio diz ter gasto quase US$ 1 bilhão no combate à
epidemia.
Diante da perspectiva de
elevar impostos para financiar os gastos extras, políticos locais decidiram
tentar recuperar pelo menos parte do dinheiro daqueles aos quais culpam pelo
início dessa crise: as companhias farmacêuticas que produziram e
comercializaram as drogas e os atacadistas e farmácias que as distribuíram.
No ano passado, pelo menos 30
Estados, cidades e municípios iniciaram ações judiciais contra farmacêuticas e
distribuidoras ou recrutaram formalmente advogados, num processo que tende a
funcionar como um prelúdio para ações legais abrangentes, segundo uma análise
do “Financial Times” baseada em documentos de tribunais e registros
governamentais.
Essa tentativa de
responsabilizar as empresas tem sido comparada com os processos movidos pelos
EUA contra a indústria do fumo, que resultou num acordo envolvendo o pagamento
de US$ 200 bilhões em 1998. “[Isso] poderá ser tão grande quanto o [caso do]
tabaco”, diz Jodi Avergun, advogada que atua como defensor em casos de crimes
de colarinho branco no escritório de advocacia Cadwalader, Wickersham &
Taft.
Ela acrescenta que as
overdoses matam hoje mais que acidentes de carro e homicídios com armas de fogo
somados. Richard Ausness, professor da Faculdade de Direito do Kentucky, prevê
que todos os 50 Estados americanos iniciarão ações legais, juntamente com
“milhares de entidades menores como condados e cidades”.
Os custos legais para as
empresas envolvidas serão “muito grandes.” Os escritórios de advocacia estão se
oferecendo para trabalhar no modelo de “taxa de sucesso”, ou seja, eles serão
remuneradas por uma grande fatia – geralmente cerca de um terço – de quaisquer
acordos ou indenizações.
Se perderem os processos, não
receberão nada. Joseph Ciaccio, advogado no escritório Napoli Shkolnik, diz que
sua empresa está “se reunindo quase diariamente” com “autoridades de condado
que pretendem ser reembolsadas pelo que gastaram e, assim, tirar o ônus dos
ombros dos contribuintes.
“Não encontramos um único
lugar que não tenha sido afetado”, diz Ciaccio, cujo escritório representa
cinco municípios que iniciaram ações judiciais. Alguns processos são contra
fabricantes. Outros se concentram nas distribuidoras. Alguns atacam ambos.
Em sua maioria, os demandantes
acusam os fabricantes de medicamentos de empregar táticas de venda agressivas
para aumentar a emissão de receitas de opioides, minimizando a relevância dos
riscos. Acusam ainda distribuidores e farmácias de terem feito pouco para
identificar o grande número de pílulas que estavam sendo desviadas para
traficantes no mercado negro.
Entre os réus mais comumente
citados estão fabricantes de medicamentos como a Purdue Pharmaceuticals, de
capital fechado, Johnson & Johnson, Allergan, Mallinckrodt, Endo e Teva;
distribuidores como a McKesson, AmerisourceBergen e Cardinal Health; e redes de
farmácias como Walgreens e CVS. Essas empresas negaram as acusações ou então se
recusaram a comentar, embora muitas tenham acrescentado que reconhecem a
gravidade da crise e querem desempenhar um papel em sua solução.
O número de mortes por
overdose envolvendo um opioide receitado quadruplicou entre 1999 e 2015 nos EUA
Num processo movido em maio pelo Estado de Ohio, e que se tornou um modelo para
a maior parte das ações legais subsequentes, o procurador-geral do Estado
acusou os fabricantes de medicamentos de se valerem de “diversos canais para
disseminar declarações falsas e enganosas” sobre quais pacientes eram
candidatos apropriados para serem tratados com opioides.
Muitos especialistas em dor
dizem que as drogas só devem ser usadas em pessoas com doenças terminais ou que
sofrem de episódios agudos de dor, mas os fabricantes de medicamentos tentaram
comercializar as pílulas para pacientes com condições crônicas, como dores nas
costas ou no pescoço, alegam as ações judiciais. Ele cita a publicidade
produzida pela Endo, que inclui imagens de pessoas que trabalham em “empregos
fisicamente exigentes”, como empregados na construção civil e chefes de
cozinha, insinuando que o medicamento Opana ER, da empresa, era adequado para
pessoas com queixas contínuas de dor.
A ação judicial também alega
que os fabricantes de produtos farmacêuticos gastaram grandes somas – quase US
$ 170 milhões em 2014 – na remuneração de representantes de vendas para
convencer médicos a usarem opioides em casos de dores crônicas, ao mesmo tempo
em que pagavam honorários a um “grupo diversificado de especialistas
aparentemente independentes” que promoviam as drogas em conferências e
descartavam os riscos de dependência.
Mesmo após o declínio no
número de fumantes, o número de mortos devido ao fumo ainda é muito superior ao
número de pessoas mortas pela epidemia de dependência de opioides. São cerca de
480 mil mortes por ano relacionadas ao fumo, segundo o CDC.
Porém muitos acreditam que o
impacto financeiro da crise de opioides – dado que deverá influenciar o
montante de possíveis indenizações ou acordos judiciais – acabará sendo muito
maior. Se, por um lado, o custo do tabagismo foi em larga medida limitado às
contas médicas, o vício em drogas está pressionando uma série de serviços
públicos, do atendimento a crianças a prisões e policiamento.
“A natureza do dano é
diferente”, diz Ausness. “Ao contrair um câncer de pulmão, você não vive por
muito tempo, mas um vício pode ser uma coisa que se mantém por 20 anos ou mais.
Em alguns aspectos, é mais permanente”. Os advogados terão pouca dificuldade
para comprovar que seus clientes estão gastando enormes somas de dinheiro para
enfrentar a crise dos opioides, segundo a advogada Avergun.
“Os custos são astronômicos e
estão ameaçando quebrar muitos municípios”, diz ela. Mas será muito mais
difícil comprovar que as empresas farmacêuticas e os distribuidores são os
culpados. Os advogados que aconselham as empresas dizem acreditar que os
queixosos terão dificuldades de provar que as ações dos fabricantes de
medicamentos – negligência ou outras – são a principal razão ou “causa
imediata” da epidemia.
“Há muitos elos na cadeia”,
diz um advogado que trabalha para uma das farmacêuticas. “Claro, as empresas
farmacêuticas criaram, desenvolveram e comercializaram as drogas – mas os
órgãos reguladores as aprovaram, médicos as receitaram e os pacientes as
tomaram. Para identificar uma causa imediata, você precisa explicar que nenhum
dos outros elos contribui [para o vício].” Avergun concorda.
“Há um fosso causal
gigantesco”, diz ela. Por essa razão, uma analogia melhor para o litígio
envolvendo os opiaceos pode ser a tentativa, em grande parte malsucedida, de
processar fabricantes de armas, segundo Ausness, porque há “vários elementos
intervenientes entre o produtor e a vítima”. Além disso, muitas mortes não são
causadas por overdose de comprimidos receitados, mas sim por heroína associada
ao fentanil, um opioide sintético cem vezes mais potente do que a morfina.
Apesar de cerca de quatro em
cada cinco viciados em heroína dizerem que se viciaram em analgésicos, as
drogas ilegais são uma das principais causas de mortes e de crimes, o que cria
alguma distância entre as farmacêuticas e a epidemia de vício.
“Ao contrário dos fabricantes
de cigarros, nossos produtos são medicamentos aprovados pela Agência
Fiscalizadora de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA), receitados por médicos
e distribuídos por farmacêuticos, para uso por pacientes com dores”, diz um
porta-voz da Purdue, acrescentando que a empresa nega “vigorosamente” as
acusações, mas compartilha das “preocupações das autoridades públicas com a
crise dos opioides”.
Na semana passada, a Purdue
apresentou formalmente uma resposta ao processo iniciado por Ohio, argumentando
que o caso deveria ser arquivado porque a decisão da FDA de aprovar as drogas e
as advertências nas bulas implicam que a empresa não pode ser processada com
base na legislação estadual. Se os jurados serão ou não convencidos de que os
fabricantes de medicamentos são inteiramente culpados pode acabar sendo
irrelevante, pois os advogados preveem que o resultado mais provável é uma
solução extrajudicial.
“Seria negligente, de nossa
parte se não explorássemos maneiras de acabar logo com isso”, diz um advogado
que trabalha para um dos grupos farmacêuticos. “Ninguém de nosso lado está
insistindo em ‘nada de acordos'”. O principal foco da discórdia é o montante de
um acordo. Enquanto os Estados e municípios apontam para o custo
incalculavelmente elevado da crise, os advogados das empresas consideram que o
setor de opiaceos é pequeno comparada com o do fumo.
As vendas de cigarros nos EUA
geraram US$ 94,4 bilhões no ano passado, de acordo com o Euromonitor, empresa
especializada na compilação de dados estatísticos, ao passo que o mercado de
opioides vendidos sob receita médica movimentou US$ 8,5 bilhões, segundo a
Quintiles IMS. Também não há nenhuma certeza de que as empresas farmacêuticas
seriam capazes de arcar com um acordo de valor próximo da ordem de grandeza dos
montantes pagos pelos fabricantes de cigarros em 1998.
Tentativa de culpar as
empresas tem sido comparada aos processos contra a indústria do fumo A J&J,
a maior empresa citada no litígio, tem muito dinheiro, mas vendeu suas
operações envolvidas com a produção de opioides em 2015 para a Depomed, ao
passo que a Purdue não divulga seus resultados financeiros.
As empresas de capital aberto
que dominam o setor de opiáceos de marca – Endo, Depomed e Mallinckrodt –
encerraram o ano passado com dívidas líquidas totais superiores a US$ 14
bilhões e exibem alguns dos mais altos níveis de endividamento no
setor farmacêutico. Mesmo que as duas partes possam concordar com um
número, os processos teriam de ser agregados numa reivindicação capaz de ser
resolvida com um único acordo geral.
Além disso, os demandantes
precisariam entrar em acordo sobre uma fórmula para determinar como o dinheiro
seria dividido, com base no número de mortes por overdose ou por receitas
emitidas. Advogados de ambos os campos dizem ser difícil estimar quanto tempo
será necessário para resolver o litígio, embora todos concordem que
provavelmente levará anos.
Enquanto isso, Harshbarger
continuará enviando às autoridades locais as contas de necrópsias das vítimas
de overdose. “Minha situação é algo peculiar”, diz ele, ponderando ser uma das
poucas pessoas a se beneficiar – financeiramente, ao menos – da crise. “Minha
carga de trabalho aumentou, e minha renda também”.
Fonte: Valor Online