Desde 2008, governo aplicou
494 multas, num total de R$ 68 milhões, por essas irregularidades
Gestores citam haver
desconhecimento de teto e estratégia de algumas distribuidoras em casos de
urgência
NATÁLIA CANCIAN
DE BRASÍLIA
Em dez anos, o governo aplicou
R$ 67,9 milhões em multas a laboratórios e distribuidoras por oferta e venda de
medicamentos ao SUS acima do preço máximo permitido para esses produtos.
Os dados são de levantamento
inédito da Cmed (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), órgão
interministerial que é responsável por estabelecer critérios e fiscalizar esses
preços.
O balanço obtido após pedido
da Folha aponta que, ao todo, foram aplicadas 494 multas desde 2008, a maioria
delas depois de denúncias das secretarias estaduais e municipais de Saúde.
A avaliação entre técnicos do
governo, porém, é que são poucos os casos que chegam ao conhecimento da câmara,
que obriga a aplicação de descontos nas vendas de determinados remédios ao
setor público desde 2007. O volume de irregularidades, assim, pode ser ainda
maior.
São casos em que as empresas
ofertaram ou venderam medicamentos ao SUS por valores acima do teto de preço
definido pela Cmed para esses produtos, chamado de PMVG (preço máximo de venda
ao governo).
Em geral, o PMVG é composto
pelo teto de preço de fábrica permitido para cada produto, o qual é estipulado
depois do registro do medicamento, e um desconto mínimo fixo para as vendas
públicas - de 19,28%.
Hoje, esse desconto é
obrigatório, entre outros, para medicamentos de alto custo, hemoderivados ou
para tratamento de DST/Aids e câncer.
Além das cobranças extras em
vendas ao SUS, levantamento da Cmed aponta ainda R$ 16,4 milhões em multas por
irregularidades no setor privado - quando há descumprimento de preços máximos
para vendas a farmácias e consumidores.
Somado, o total de multas
chega a R$ 84,3 milhões. O órgão não informou quanto já foi pago até agora.
Afirma apenas que, entre 2012 e 2016, foram recebidos R$ 2,1 milhões - ou 2,5%
do total.
O valor é destinado ao Fundo
de Defesa de Direitos Difusos, administrado pelo Ministério da Justiça e
aplicado em ações de reparação de danos causados após infrações.
Atualmente, sete empresas
respondem por 286 processos de infrações na Cmed, a maioria por descumprimento
de preço máximo em vendas ao setor público. Juntas, elas respondem por 60% do
valor total em multas do órgão.
A primeira da lista é a
Hospfar, que responde por 51 processos, com multa de R$ 13,7 milhões. Em
seguida, está a Help Farma, multada em R$ 12 milhões, e a Medcomerce, com R$ 8
milhões.
A maioria atribui o problema à
falta de informação e orientação sobre as regras da Cmed ou às falhas de
editais das secretarias de saúde.
Já representantes das
secretarias locais apontam pressão judicial e alta rotatividade de técnicos e
gestores como fatores que levam a compras acima do preço.
PREJUÍZOS
A situação tem sido alvo de
análise dos órgãos de controle, como CGU (Controladoria-Geral da União) e TCU
(Tribunal de Contas da União).
Relatório divulgado em agosto
pela CGU, por exemplo, encontrou preços até 20% acima do limite máximo em cinco
Estados (Amapá, Piauí, Santa Catarina, Roraima e Rio Grande do Norte). O
trabalho analisou as verbas destinadas ao Componente Especializado de
Assistência Farmacêutica, programa do Ministério da Saúde.
Para a controladoria, o
descumprimento do preço-teto para venda ao governo "não se trata apenas de
problema financeiro, mas também implica em volume menor de medicamentos que
pode vir a ser adquirido para o SUS".
Em Santa Catarina, o órgão
verificou que, só na compra de 180 mil cápsulas de dois tipos de pancreatina,
remédio indicado para fibrose cística e problemas no pâncreas, o valor cobrado
estava 20% acima do limite máximo. Resultado: prejuízo de R$ 43,7 mil.
No Amapá, ao analisar a compra
de 29 medicamentos, a equipe de fiscalização viu que seis deles estavam acima
do PMVG. Um deles era Leuprorrelina, indicado para câncer de próstata.
Ao todo, foram adquiridos 50
frascos-ampola do produto, no valor de R$ 1.122,65 cada. O preço máximo de
venda ao governo, porém, era de R$ 931,17 - R$ 191,48 a menos.
Em alguns casos, a demora ao
verificar o descumprimento do preço máximo gera prejuízo ainda maior.
Em Minas Gerais, por exemplo,
uma auditoria em compras feitas pela secretaria estadual de saúde entre
2008 e 2012 apontou prejuízo de R$ 28 milhões por valores acima do PMVG.
ALÉM DO PREÇO
Mas o que leva à compra de
medicamentos acima do preço máximo permitido?
Segundo secretarias de saúde e
técnicos ouvidos pela Folha, a hipótese é que isso ocorra tanto por
desconhecerem a lista de preços máximos válidos para alguns medicamentos,
disponibilizada no site e em resoluções da Cmed, quanto por estratégia de
algumas empresas, sobretudo em casos de urgência na compra - caso de ações
judiciais, por exemplo. Prefeituras, assim, estariam mais vulneráveis ao
problema por realizarem compras menores.
Elton Chaves, assessor técnico
do Conasems (conselho que reúne secretários municipais de
saúde), diz que a distribuição irregular do mercado faz com que o preço máximo
seja frequentemente usado não como um limite, mas como valor de referência
pelas distribuidoras.
"Os municípios ficam
reféns dessa situação de mercado. Alguns consideram o preço da Cmed, mas têm
licitação deserta. Vira uma realidade imposta", afirma.
Ainda de acordo com Chaves,
muitas secretarias deixam de denunciar cobranças acima do preço por medo de não
encontrar outro distribuidor para obter os remédios.
A falta de atenção ao valor
máximo, no entanto, eleva os gastos do SUS. "Sem um preço justo, o poder
de compra do município diminui, e também o acesso aos medicamentos",
afirma.
O governo federal chegou a se
envolver num embate com empresas e associações da indústria farmacêutica ao
concentrar em apenas três laboratórios, sem licitação, um mercado de seis
medicamentos usados no SUS, num montante de R$ 1,44 bilhão.
Conforme antecipado nesta
segunda-feira (16) pela coluna "Mercado Aberto", da Folha, o ministro
da Saúde, Ricardo Barros, planeja implementar algumas mudanças
ainda neste ano, com a ideia de fixar prazos mais rígidos e alterar a forma de
pagamento às farmacêuticas.
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Os municípios ficam reféns
dessa situação de mercado. Alguns consideram o preço da Cmed [órgão
interministerial], mas têm licitação deserta. Vira uma realidade imposta.
ELTON CHAVES
assessor do Conasems (conselho
de secretários municipais de saúde)