Acordo
técnico com empresa para desenvolver insulina no Brasil foi firmado em 2006,
mas até hoje nenhum frasco da substância foi produzido
Uma
empresa ucraniana, que já recebeu R$ 196 milhões de dinheiro público pela
importação de insulina distribuída pelo SUS a portadores de diabetes e para
compartilhar a tecnologia de fabricação da substância no Brasil, foi reprovada
em inspeção da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Após visitar
as instalações da Indar em Kiev, a agência rejeitou o pedido de renovação do
chamado certificado de boas práticas de fabricação de medicamentos. Por conta
da decisão da Anvisa, a compra do produto da Indar acabou suspensa pelo
governo. A suspensão ocorre em meio a concretização de um acordo entre o
laboratório europeu e o governo da Bahia. A gestão do petista Rui Costa planeja
instalar uma unidade de produção de insulina no estado, com orçamento estimado
entre R$ 250 milhões e R$ 300 milhões.
As
primeiras tratativas entre o laboratório e o governo brasileiro para atuar no
país ocorreram em 2003, primeiro ano das gestões do PT. Em julho de 2006, Indar
e Fiocruz assinaram um acordo técnico-científico para transferência de
tecnologia destinada à produção de insulina humana recombinante. Porém, este
acordo ainda não resultou na produção de um único frasco de insulina no Brasil.
Agora,
uma nova parceria foi assinada, entre a indústria farmacêutica ucraniana e a
Bahiafarma, o laboratório público do governo da Bahia. O governador e seu
secretário de Desenvolvimento Econômico, o ex-ministro Jaques Wagner, foram a
Kiev no fim de agosto assinar acordo para instalação de fábrica de insulina na
região metropolitana de Salvador.
DISPUTA
DE MERCADO
A
compra da substância envolve uma disputa milionária de interesse do mercado
farmacêutico. Os grandes laboratórios pressionam contra o avanço de parcerias
que permitam a produção própria de insulina no Brasil. A produção é dominada
mundialmente por três grandes indústrias farmacêuticas: a dinamarquesa Novo
Nordisk, a norte-americana Eli Lilly e a francesa Sanofi. Somente a Novo
Nordisk recebeu do Ministério da Saúde R$ 183,5 milhões, em 2016, e R$ 59,6
milhões, neste ano, para fornecer a insulina disponibilizada no SUS. A Eli
Lilly recebeu R$ 4,4 milhões do ministério no ano passado, boa parte pelo
fornecimento de insulina.
O
pedido de inspeção na Indar na Ucrânia partiu da Fiocruz e da própria
Bahiafarma. Os técnicos da Anvisa estiveram na indústria uma semana antes da
chegada da comitiva do governador. O indeferimento da renovação da certificação
ao laboratório ucraniano — a primeira desde 2010, quando a Indar obteve o
primeiro certificado — foi publicado no Diário Oficial da União no dia 16 do
mês passado. A Anvisa detectou o que os fiscais chamam de “não conformidade”
considerada crítica e outras oito consideradas “maiores” — o indeferimento
ocorre quando existem pelo menos seis infrações tidas como “maiores”.
Uma
das “não conformidades maiores” apontadas pela Anvisa foi a inexistência de
conferência em 100% da rotulagem dos frascos, no que diz respeito a lote e
validade. Os técnicos da Anvisa também detectaram uma ausência de determinação
de vida útil de resinas que fazem a retirada de impurezas da insulina. Sobre
higiene, faltaram procedimentos para troca de vestuário e detergentes com atividade
germicida comprovada, conforme a Anvisa.
Essa
certificação não é obrigatória para a fabricação de medicamentos. Mas técnicos
da Anvisa e do mercado farmacêutico entendem ser temerário uma produção de
insulina ou qualquer outro medicamento sem o certificado. Este é o entendimento
dentro da Bahiafarma, que decidiu suspender qualquer iniciativa de importação
até que o problema seja resolvido.
Os
R$ 196 milhões gastos com a Indar até agora dizem respeito à importação de
insulina e à transferência de tecnologia para fabricar o produto, segundo a
Fiocruz. Registros fornecidos pelo Ministério da Saúde, no entanto, apontam que
os contratos estipulam gastos de R$ 330,9 milhões com 28,6 milhões de frascos
do produto importados entre 2007 e 2016. Cada frasco custou R$ 11,57. A Indar
alegou existirem “condições de confidencialidade” no acordo e não forneceu os
valores.
7%
DE TODA A INSULINA DO SUS
Pelo
contrato, o governo comprava todo ano 2,65 milhões de frascos de insulina da
Indar. Isso representa 7% da insulina ofertada via SUS aos pacientes de
diabetes. O Brasil tem 14 milhões de diabéticos — 2 milhões fazem uso do
medicamento fornecido pelo SUS. Estimativas apontam que 8% da população tem
diabetes e, dentre os diabéticos, 14% são insulino-dependentes.
A
Fiocruz afirmou terem ocorrido “diversos infortúnios com a empresa
transferidora (mudança de direção, privatização e reestatização), o que tornou
difícil um processo contínuo e dentro do prazo acordado”. Depois do acordo
técnico-científico, uma parceria para o desenvolvimento produtivo chegou a ser
assinada em 2013. O acordo técnico segue vigente. A Fiocruz diz que “é possível
atestar a qualidade e a segurança do produto distribuído no SUS”.
DESENVOLVIMENTO
PRESERVADO, DIZEM EMPRESA E FIOCRUZ
O
diretor-presidente da Bahiafarma, Ronaldo Dias, disse ao GLOBO que já solicitou
à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) uma nova vistoria na Indar
— o laboratório ucraniano parceiro na produção de insulina — e que pedirá
urgência ao órgão de fiscalização. A expectativa de Dias é que os técnicos
viajem outra vez a Kiev no próximo mês.
—
Estamos vendo os pontos do relatório da Anvisa e já recebemos as respostas da
Indar para cada um deles. Nunca houve risco sanitário do produto — afirmou o
diretor da farmacêutica do governo da Bahia.
A
expectativa mais otimista dentro da Bahiafarma é que a renovação da
certificação de boas práticas de fabricação de medicamentos saia em janeiro do
próximo ano. A mais pessimista, que a inspeção ocorra em fevereiro e que um
eventual novo certificado seja expedido no mês seguinte. O laboratório público
sustenta que as irregularidades foram sanadas e que não haverá um novo
indeferimento na certificação. O projeto da fábrica de insulina na Bahia
prossegue durante essa fase de análise pela Anvisa, segundo o diretor da
empresa.
—
Não há um comprometimento do processo sanitário. O certificado atual é válido
até fevereiro de 2018. Além disso, a renovação do registro do produto foi
publicada em março deste ano, com validade de cinco anos — disse Dias.
A
parceria para o desenvolvimento produtivo destinou à Bahiafarma e Indar um
mercado de 13,5 milhões de frascos de insulina por ano.
—
Ninguém pode ser produtor único de nada. Foi esse o entendimento prevalecente
no Ministério da Saúde. Este é o primeiro grande projeto biotecnológico no
Nordeste brasileiro — disse o diretor da Bahiafarma.
Em
resposta por e-mail, a representante da Indar, Maryna Potibenko, disse
considerar “a indicação de não conformidade pelo órgão regulador brasileiro um
processo natural”. “A Anvisa é um dos mais exigentes órgãos regulatórios do
mundo. Sendo assim, é impossível a presença do produto de má qualidade no
mercado do Brasil. A qualidade e a segurança da insulina de Farmanguinhos
(produzida por Indar) comprovam os dados de farmacovigilância, obtidos no
Brasil”, afirmou.
“MANOBRA
PROTELATÓRIA”
Potibenko
citou a Novo Nordisk, que “não vendia insulina no mercado brasileiro durante 36
meses por motivo de adequação de não conformidade indicada pela Anvisa”. Segundo
ela, a farmacêutica dinamarquesa tentou uma proposta de transferência de
tecnologia com o governo brasileiro, mas a estratégia não passou de “manobra
protelatória, apenas para que não fosse efetivado o acordo com a Indar,
mantendo assim indefinidamente a atividade oligopolista da Novo Nordisk”.
Segundo
a representante da Indar, a tecnologia foi transferida à Fiocruz. Além disso, a
parceria permitiu expressiva redução de preços, conforme a executiva. “O acordo
Fiocruz/Farmanguinhos e Indar está vigente. O envolvimento da Bahiafarma é a
etapa final da realização do acordo, relacionada com a construção da fábrica”,
disse.
A
Fiocruz, por meio da assessoria de imprensa, afirma que a transferência de
tecnologia segue em andamento. “Farmanguinhos já reproduziu o processo em
escala laboratorial até a etapa final de produção de cristais. Atualmente,
Farmanguinhos é detentor de bancos de células do agente produtor da insulina e
do conhecimento do processo completo”. O estágio atual, segundo a empresa, é de
“aumento da escala dos processos para melhorar as condições de portabilidade da
produção industrial de cristais de insulina”. Farmanguinhos vai capacitar a
equipe da Bahiafarma, segundo a assessoria.
Segundo
a Fiocruz, a insulina da Indar é segura. “Durante todo o período de acordo, que
já apresenta dez anos de distribuição, não houve registro de quaisquer reações
adversas que comprometam a segurança ou eficácia do medicamento”.
O
Ministério da Saúde diz que a transferência de tecnologia “tem sido realizada”.
O governador da Bahia, Rui Costa, informou que a área técnica responderia sobre
o caso.
Foto:
Joerg Sarbach/ AP – Jornal Extra