Persiste
no Brasil uma "cultura do antibiótico", em que pacientes esperam
receber o remédio e em que médicos banalizam sua prescrição. No entanto, o uso
excessivo desses medicamentos deve ser contido se quisermos frear a expansão de
bactérias resistentes, que já matam 23 mil pessoas no Brasil por ano, afirmam
especialistas. Para diminuir seu uso, médicos e pacientes precisam restringir
seu uso a casos graves e não para "tratar qualquer sintoma",
argumentam.
"Existe
uma tendência enorme à medicalização no Brasil. As pessoas têm qualquer sintoma
e querem um remédio. Sabemos que uma gripe vai demorar cerca de sete dias para
passar, mas as pessoas querem remédio para encurtar isso", afirma Ana
Escobar, médica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas e livre
docente em Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Em
outubro, o Ministério da Saúde do Reino Unido recomendou aos médicos do país
que receitassem mais descanso e menos antibióticos aos pacientes. De acordo com
o órgão, cerca de um quinto dos antibióticos naquele país são usados
desnecessariamente, para doenças que seriam curadas sozinhas.
No
Brasil, um dos países que mais contribuiu para o aumento global do consumo de
antibióticos na última década, ainda não há uma recomendação oficial do tipo,
mas médicos alertam para a importância de frear o consumo desses remédios para
evitar a expansão de superbactérias.
"Os
números referentes à evolução da resistência antimicrobiana são
assustadores", diz Luiz Henrique Melo, médico infectologista e consultor
da empresa farmacêutica MSD, que gere programas para a racionalização no uso de
antibióticos.
A falta de estrutura adequada dos
postos e hospitais, onde nem sempre há a possibilidade de diagnóstico rápido
por exames laboratoriais para checar se há uma infecção bacteriana, também
dificulta a vida dos médicos. De acordo com um levantamento preliminar da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 2015, o Brasil tem
praticamente um laboratório de microbiologia para cada dez hospitais.
Esses
laboratórios são essenciais para identificar as causas de uma infecção e
municiar médicos com informações sobre que remédios receitar ao paciente. Sem
tais laboratórios e exames, médicos tomam decisões no escuro e podem errar na
prescrição.
Ausência
de critérios claros
Para
auxiliar os profissionais de saúde no uso racional desses remédios, seriam
necessários protocolos mais claros e rígidos, afirma Escobar. De acordo com a
médica, em muitos casos, há critérios bem definidos para o uso de antibióticos
– como no tratamento de pneumonia, amigdalite e otite –, mas seriam necessárias
recomendações mais abrangentes.
"Esse
respaldo precisaria vir de diretrizes universais. Um critério, por exemplo, é a
recomendação de antibiótico para amigdalite apenas se houver infecções por
bactérias estreptococos do grupo A (GAS)", afirma. "Temos algumas
diretrizes, mas não temos uma divulgação disso."
Em
maio, o governo brasileiro anunciou a elaboração de um plano nacional de
combate a bactérias resistentes a pedido da Organização Mundial de Saúde (OMS).
O governo diz que pretende educar melhor profissionais e pacientes sobre a
urgência do tema. A previsão é que o plano seja colocado em prática a partir de
2018.
O
Ministério da Saúde disse por meio de nota que o Brasil se destaca no combate à
resistência antimicrobiana na América do Sul. "Entre os esforços
[nacionais], está a experiência brasileira de obrigatoriedade e retenção de
prescrição para antibióticos em farmácias, que contribuiu para a contenção da resistência",
afirmou.
"Este
é um tema prioritário para a saúde pública devido ao crescimento no número de
bactérias resistentes, com comprometimento ou, até mesmo, impossibilidade de
cura com os antibióticos existentes, de doenças como tuberculose e
malária", declarou.
Resistência
antimicrobiana
Desde
a descoberta do primeiro antibiótico, a penicilina, bactérias e medicamentos
travam uma disputa em que um busca vencer o outro.
A
resistência a antibióticos é um processo natural – as bactérias, ao serem
atacadas pelos remédios, criam mecanismos de defesa para sobreviver. Os
organismos não exterminados por medicamentos são chamados de resistentes e
passam o gene da resistência à sua prole, gerando uma nova linhagem de
bactérias resistentes.
O
uso abusivo de antibióticos contribui para esse processo e, por isso, sua
utilização racional é importante para controlar a expansão de bactérias mais
fortes que os medicamentos disponíveis.
Quando
o ritmo de inovação da indústria farmacêutica na área de antibióticos era alto,
a resistência não apresentava grandes desafios. Porém, nas últimas três
décadas, o número de antibióticos desenvolvidos desacelerou, enquanto as
bactérias continuaram com suas mutações naturais e passaram à frente nessa
corrida.
A
redução no número de novos antibióticos aprovados nos Estados Unidos nos
últimos 30 anos ilustra essa desaceleração: enquanto na década de 1980, 30
novos antibióticos foram aprovados pela Food and Drug Administration (FDA), a
Anvisa americana, apenas sete foram registrados entre 2000 e 2009.
"Ao
longo dos anos a indústria farmacêutica se desinteressou pelo setor de
antibióticos. Os governos estão estimulando as empresas a voltar a produzir,
principalmente para cobrir esses medicamentos que estamos perdendo",
afirma Melo.
Keila
Guimarães, De São Paulo para a BBC Brasil
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