Um dos principais desafios na área de proteômica –
ciência que busca identificar o conjunto de proteínas presente em amostras
biológicas – é conseguir discriminar moléculas que, apesar de serem
estruturalmente diferentes, apresentam a mesma massa.
Isso porque o principal equipamento usado nesse
tipo de estudo – o espectrômetro de massas – funciona como uma balança
molecular, ou seja, ele separa as moléculas analisadas de acordo com a massa.
Uma das formas de reduzir confusões dentro do
aparelho é submeter previamente a amostra a técnicas como a cromatografia
líquida, capaz de separar as proteínas que gostam de água (hidrofílicas) das
que não gostam (hidrofóbicas). As hidrofílicas entram primeiro no espectrômetro
e as mais hidrofóbicas ficam por último, diminuindo a chance de duas moléculas
diferentes de massa equivalente serem lidas pelo equipamento como uma coisa só.
“É como montar um quebra-cabeça de milhões de
peças. Quando você abre o saco pela primeira vez, as peças estão misturadas e
sobrepostas. O primeiro passo é separá-las. Nós, que trabalhamos com
proteômica, estamos sempre tentando aperfeiçoar as técnicas para fazer essa
separação”, disse Daniel Martins-de-Souza, coordenador do Laboratório de
Neuroproteômica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em um estudo com resultados recentemente publicados
na revista Proteomics,
com destaque na capa do periódico, o grupo de Martins-de-Souza otimizou um
método para aumentar a resolução das análises proteômicas por espectrometria de
massas. Graças à união de outras duas técnicas – cromatografia líquida
bidimensional e mobilidade iônica – a equipe da Unicamp conseguiu identificar
10.390 proteínas expressas em oligodendrócitos, as células do sistema nervoso
central responsáveis pela produção de mielina, uma substância lipídica
fundamental para a troca de informação entre neurônios.
Em um trabalho
anterior, no qual foi usada apenas a cromatografia líquida
unidimensional para fazer a separação prévia, o grupo havia identificado nesse
mesmo tipo celular apenas 2.290 proteínas.
“Agora, temos um banco de dados bem mais completo
das proteínas de oligodendrócitos e isso vai ser útil tanto para nossos estudos
quanto para outros pesquisadores da área. Os dados estão disponíveis on-line e
podem ser baixados. Além disso, essa técnica de otimização pode ser aplicada
para estudar o proteoma de qualquer amostra biológica de interesse”, disse
Martins-de-Souza.
Com apoio
da FAPESP, o grupo da Unicamp vem há alguns anos estudando o
proteoma dos oligodendrócitos com o objetivo de compreender melhor as causas da
esquizofrenia e, desse modo, propor novas abordagens terapêuticas.
Segundo Martins-de-Souza, os tratamentos hoje
disponíveis têm como foco os neurônios. No entanto, na avaliação do
pesquisador, as falhas na comunicação neuronal observadas em portadores de
esquizofrenia podem ser uma consequência de disfunções nos oligodendrócitos.
“Uma de nossas linhas de pesquisa é avaliar como os
medicamentos usados contra a doença modificam o proteoma dos oligodendrócitos.
Com essa nova metodologia, poderemos obter cinco vezes mais informação sobre o
papel desses fármacos”, afirmou.
O trabalho foi desenvolvido durante o pós-doutorado de
Juliana Silva Cassoli e o mestrado de
Caroline Brandão Teles – ambas bolsistas da FAPESP e orientandas de
Martins-de-Souza.
Como
funciona
O primeiro passo das análises proteômicas baseadas
em espectrometria de massas é quebrar as proteínas extraídas da amostra
biológica de interesse, no caso o oligodendrócito, em partículas menores
chamadas peptídeos.
“Uma proteína pequena pode dar origem a pelo menos
10 peptídeos diferentes. O espectrômetro tem dificuldade para lidar com a
molécula inteira por ser muito grande”, explicou Martins-de-Souza.
Em seguida, o grupo submeteu a amostra à separação
por cromatografia. Mas, em vez de usar uma única matriz, como na técnica
convencional, foram usadas duas. Desse modo, ocorre uma primeira separação, na
qual apenas um quinto dos peptídeos injetados sai para o espectrômetro na forma
líquida. Depois ocorre uma segunda etapa de separação, na qual sai o segundo
quinto e assim sucessivamente.
“É como se antes estivéssemos espalhando as peças
do quebra-cabeça com apenas uma mão e, agora, estivéssemos usando as duas”,
disse o pesquisador.
Dentro do espectrômetro, a amostra é transformada
em gás e voa de um lado para outro sob vácuo. Quanto menor for o peptídeo, mais
rapidamente ele chega ao destino e, assim, o equipamento calcula a massa.
Nesse momento em que as moléculas estão voando
dentro do espectrômetro entra em ação a técnica de mobilidade iônica. Por meio
de um tubo, um pouco de gás é injetado dentro do aparelho.
“A resistência que cada molécula oferece ao gás
depende de sua forma tridimensional. Portanto, se houver dois peptídeos
diferentes de mesma massa voando juntos e jogarmos um vento na direção
contrária, a tendência é que ocorra uma separação pela força de resistência ao
gás. É como pegar duas folhas de papel de mesma massa e amassar uma delas
apenas. Por causa da forma, aquela que está amassada chegará mais rápido ao
chão”, explicou Martins-de-Souza.
Ao final do experimento, os mais de 223 mil
peptídeos identificados pelo espectrômetro foram reconstruídos por meio de
ferramentas de bioinformática – dando origem às 10.390 proteínas descritas no
trabalho. O grupo também mapeou, por meio de bioinformática, os compartimentos
celulares em que as proteínas são encontradas e os processos biológicos em que
estão envolvidas.
“O ideal é que sejam identificados dois peptídeos
por proteína, pelo menos. Assim, podemos ter certeza de que uma molécula está
de fato presente na amostra, pois dificilmente encontramos duas proteínas com
dois peptídeos exatamente iguais. Neste trabalho, cerca de 20% das proteínas
foram identificadas por mais de 20 peptídeos”, contou o pesquisador.
Ainda segundo Martins-de-Souza, a metodologia
permitiu identificar até mesmo proteínas pouco abundantes na amostra – em
quantidade cerca de 10 milhões de vezes menor que as moléculas mais expressas.
“Um dos problemas da espectrometria de massas é que
uma peça muito grande do quebra-cabeça pode esconder as menores. Mas com uma
boa ferramenta para espalhar as peças torna-se possível ver praticamente todas
elas”, disse.
Karina Toledo | Agência FAPESP
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