Anvisa ainda não está
preparada para as demandas do porvir
A simultaneidade de vários
fatores econômicos e sociais empurra o Brasil para a decisão urgente sobre um
novo modelo de vigilância sanitária – área sensível do Estado, que supervisiona
mercados gigantescos como alimentos, medicamentos e defensivos agrícolas (algo
em torno de 22% do PIB). O termo “urgência” não é exagero, em função do acúmulo
de fatores econômicos e sociais: a oferta crescente de produtos e serviços, as
transações comerciais cada vez mais rápidas e complexas decorrentes das novas
tecnologias, e as travas à atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) decorrentes da hesitação brasileira sobre prerrogativas e modus
operandi do modelo e agências reguladoras são os fatores que nos pressionam.
A falta de revisão e renovação
sobre a atuação da Anvisa reflete a mentalidade gerencial brasileira, não é
algo específico contra essa agência. Mas torna-se mais crítica diante dos
desafios cotidianos de saúde humana, saúde animal e sanidade ambiental, afora a
necessidade de desenvolvimento econômico. Constata-se que as ferramentas e a
velocidade do Estado tornam-se mais e mais diminutos frente ao mercado, no
mundo inteiro. Porém, em outros países, tal conclusão levou governos a
apresentarem soluções céleres para que o aparato estatal continuasse efetivo na
análise, registro e fiscalização de alimentos, suplementos, fármacos e
pesticidas. Tudo isso com transparência na informação e relacionamento com os
consumidores, os cidadãos.
Em parte daqueles países, a
mudança para melhor ocorreu com uma revisão e discussões CONCEITUAIS sobre a
forma de atuação da agência de vigilância sanitária. Mais especificamente,
confrontaram-se em algum momento os modelos “pré-mercado” (onde hoje se
enquadra a Anvisa) e “pós-mercado”. Ambos se orientam, claro, pelo objetivo de
assegurar a segurança, eficácia e qualidade dos produtos, mas divergem na
interação com o mercado e com o cidadão.
Operacionalmente, no modelo
pré-mercado, o esforço das autoridades é concentrado nas etapas anteriores à
colocação do produto no mercado: os técnicos da agência avaliam um dossiê
apresentado pelas empresas que querem colocar produtos à venda, e desse dossiê
devem constar dados e informações suficientes para comprovar que, se tudo for
feito daquela mesma maneira, o produto está adequado ao consumo. Resumindo
muito, exige-se que as empresas executem sua produção exatamente igual ao
registrado, já que só assim haverá garantia de que a população consume o
produto conforme registrado e, portanto, seguindo parâmetros de segurança e eficácia.
Já no modelo pós-mercado, isso
continuará sendo feito, mas de maneira mais flexível, deixando à conta dos
produtores grande parte dessa responsabilidade. Porém, consequentemente, os
fabricantes estarão sujeitos a uma fiscalização posterior do produto colocado
no mercado, que pode ser até mais efetiva do que a executada atualmente.
Antes de relacionar as duas
possibilidades de modelo à Anvisa, cabe uma ressalva crítica: o modelo
pré-mercado não isenta a autoridade de avaliar o pós.
Explique-se: uma vez
registrado o produto com todos os padrões de exigência em sua fabricação, será
necessário, no mínimo, assegurar que as empresas seguem o processo à risca.
Significa que qualquer
alteração naquele processo, por vontade ou necessidade, deve ser apresentado à
Anvisa e isso pressupõe que a autoridade sanitária estará pronta para avaliar a
qualquer momento todos os pedidos de alteração – do contrário o Estado poderá
travar o mercado. Em outras palavras, a máquina estatal estará engessando o
processo produtivo, os investimentos e lucros, e dando golpe mortal nos
princípios da concorrência e inovação.
Voltemos à nossa Agência
Nacional de Vigilância Sanitária. Perto de completar seus 20 anos, exibe uma
ficha corrida de bons serviços no sentido de dar segurança à população no
consumo dos produtos e serviços por ela regulados. Saímos da época da célebre
pílula de farinha para uma atualidade em que não se conhece mais fábricas de
falsificação de medicamentos em território nacional. Temos total garantia que os
produtos que consumimos no Brasil têm qualidade.
E observem que nos últimos
anos a Anvisa tem sofrido constantes teste, lembrem-se da pílula do câncer, dos
anorexígenos, das liberações de importações sem a aprovação da licenças, e
outros casos menos conhecidos que acontecem cotidianamente. Mas essa lista de
bons serviços é suficiente? Não, em absoluto!
Temos de admitir que a Anvisa
ainda não está preparada para as demandas do porvir. Existem necessidades de
várias ordens, mas a maior preocupação deve ser a matriz CONCEITUAL, o marco
regulatório, o modelo de atuação. Daí decorre todo o resto. Nos países com
vigilância sanitária avançada, primeiro veio a reflexão conceitual, geralmente
com a decisão de mudar o grau de dependência do mercado em relação à avaliação
da autoridade reguladora.
É preciso pensar numa
regulação mais moderna. É de fundamental importância registrar enfaticamente
que os modelos atual e passado não foram errados, talvez apenas já tenham
contribuído ao máximo, chegado à exaustão. O processo de desenvolvimento de um
produto mudou. Os processos produtivos mudarão. A sociedade muda. E as
autoridades regulatórias devem mudar para acompanhar tudo isso. Precisamos,
como autoridades sanitárias, nos juntarmos, então porque não pensar em aproveitar
o trabalho uma das outras? Não se pode pensar em reconhecimentos recíprocos,
como nos velhos modelos de cooperação internacional, mas pode-se aproveitar a
análise feita por outra autoridade.
Neste ponto, as indagações
naturais são: será que podemos migrar para um modelo pós-mercado? Será possível
adotar fórmula de menor dependência da regulação da Anvisa?
Depender menos do Estado
implica, entre outras coisas, contar com a população para fiscalizar todos os
produtos, incluindo os aparatos de comunicação com o cidadão e ferramentas de
denúncias e fiscalizações eficientes.
Ressalte-se outro
questionamento: não seria possível reduzir a dependência da regulação apenas
PARCIALMENTE, ou seja, reduzindo o mecanismo para aqueles segmentos de mercados
equilibrados, onde há bastante concorrência entre produtos/serviços e com já
consolidada qualidade e segurança? Devemos avaliar nosso processo estatal e
verificar a efetividade de ficar analisando itens antes de conceder a
autorização de comercialização, diante da enormidade de produtos desenvolvidos
todos os dias.
Por outro lado, a avaliação do
modelo de atuação pós-mercado precisa fortemente de redes de laboratórios de
checagem muito eficientes. O sistema de pós-mercado é de maior custo. Mas
muitas vezes surge como melhor solução diante dos gargalos terríveis criados
pelo modelo pré-mercado – que cria “filas” de registro de produtos e serviços,
que por vezes duram anos! E, com isso, perdem-se inovações cruciais às empresas
e à sociedade…
Assim, escolher-se o modelo de
pré mercado significa ter uma quadro de técnicos e modelos de análise que deem
conta dessa, e assim queremos, já que está diretamente relacionada ao
crescimento do país, infindável demanda. Porém todos nós também sabemos da
limitação dessa gestão pelos modelos do estado brasileiro de hoje. Desde a
dificuldade de ter quadros móveis de servidores, até mudanças de processos de
trabalho. Neste pé, mais uma vez mostra-se necessário refletir sobre o modelo
regulatório que melhor se encaixa no Brasil.
Então como escolher o modelo
mais adequado? A resposta não é simples. A meu ver, passa antes por uma
percepção do mercado que se regula e do atual nível de compliance do setor
produtivo, além de uma necessidade de comunicação clara do modelo junto à
população.
Alguns críticos poderiam ver
nisso a famosa expressão do “Estado mínimo”, nome depreciativo que remete a uma
suposta perda de qualidade na ação estatal. Mas façamos um raciocínio sobre o
sistema de pesos e contrapesos do modelo pós-mercado, partindo do pressuposto
que ele aumenta em muito a parcela de responsabilidade do empresariado sobre o
processo produtivo.
Num mundo com informações cada
vez mais ágeis, incluindo a imprensa, e com os possíveis efeitos manada de
investidores nas bolsas de valores, quanto custaria a uma empresa a retirada de
produto por desvio de qualidade? Por outro lado, os defensores do pós-mercado
argumentam que esse modelo induz cada vez mais a uma auto fiscalização pelos
fabricantes.
Muito mais fatores devemos
considerar: o tamanho da economia, a pujança e competitividade de cada segmento
de mercado, a capacidade de cada setor de desenvolver tecnologias e inovações,
os índices de fiscalização dos parques fabris e o grau de compliance entre os
fabricantes…
Muitas perguntas a serem
respondidas, mas uma conclusão é certa: o modelo brasileiro precisa ser
reavaliado urgentemente. O importante é enfrentar essa discussão! A vigilância
sanitária não pode ser trava ao desenvolvimento.
O risco sanitário é
eficientemente controlado hoje. Mas é preciso evoluir para continuar fornecendo
essa segurança.
Renato Porto – Diretor da
ANVISA