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quinta-feira, 3 de maio de 2018

Regulatory reliance: que modelo seria adequado para o Brasil?


Anvisa ainda não está preparada para as demandas do porvir

A simultaneidade de vários fatores econômicos e sociais empurra o Brasil para a decisão urgente sobre um novo modelo de vigilância sanitária – área sensível do Estado, que supervisiona mercados gigantescos como alimentos, medicamentos e defensivos agrícolas (algo em torno de 22% do PIB). O termo “urgência” não é exagero, em função do acúmulo de fatores econômicos e sociais: a oferta crescente de produtos e serviços, as transações comerciais cada vez mais rápidas e complexas decorrentes das novas tecnologias, e as travas à atuação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decorrentes da hesitação brasileira sobre prerrogativas e modus operandi do modelo e agências reguladoras são os fatores que nos pressionam.

A falta de revisão e renovação sobre a atuação da Anvisa reflete a mentalidade gerencial brasileira, não é algo específico contra essa agência. Mas torna-se mais crítica diante dos desafios cotidianos de saúde humana, saúde animal e sanidade ambiental, afora a necessidade de desenvolvimento econômico. Constata-se que as ferramentas e a velocidade do Estado tornam-se mais e mais diminutos frente ao mercado, no mundo inteiro. Porém, em outros países, tal conclusão levou governos a apresentarem soluções céleres para que o aparato estatal continuasse efetivo na análise, registro e fiscalização de alimentos, suplementos, fármacos e pesticidas. Tudo isso com transparência na informação e relacionamento com os consumidores, os cidadãos.

Em parte daqueles países, a mudança para melhor ocorreu com uma revisão e discussões CONCEITUAIS sobre a forma de atuação da agência de vigilância sanitária. Mais especificamente, confrontaram-se em algum momento os modelos “pré-mercado” (onde hoje se enquadra a Anvisa) e “pós-mercado”. Ambos se orientam, claro, pelo objetivo de assegurar a segurança, eficácia e qualidade dos produtos, mas divergem na interação com o mercado e com o cidadão.

Operacionalmente, no modelo pré-mercado, o esforço das autoridades é concentrado nas etapas anteriores à colocação do produto no mercado: os técnicos da agência avaliam um dossiê apresentado pelas empresas que querem colocar produtos à venda, e desse dossiê devem constar dados e informações suficientes para comprovar que, se tudo for feito daquela mesma maneira, o produto está adequado ao consumo. Resumindo muito, exige-se que as empresas executem sua produção exatamente igual ao registrado, já que só assim haverá garantia de que a população consume o produto conforme registrado e, portanto, seguindo parâmetros de segurança e eficácia.

Já no modelo pós-mercado, isso continuará sendo feito, mas de maneira mais flexível, deixando à conta dos produtores grande parte dessa responsabilidade. Porém, consequentemente, os fabricantes estarão sujeitos a uma fiscalização posterior do produto colocado no mercado, que pode ser até mais efetiva do que a executada atualmente.

Antes de relacionar as duas possibilidades de modelo à Anvisa, cabe uma ressalva crítica: o modelo pré-mercado não isenta a autoridade de avaliar o pós.

Explique-se: uma vez registrado o produto com todos os padrões de exigência em sua fabricação, será necessário, no mínimo, assegurar que as empresas seguem o processo à risca.

Significa que qualquer alteração naquele processo, por vontade ou necessidade, deve ser apresentado à Anvisa e isso pressupõe que a autoridade sanitária estará pronta para avaliar a qualquer momento todos os pedidos de alteração – do contrário o Estado poderá travar o mercado. Em outras palavras, a máquina estatal estará engessando o processo produtivo, os investimentos e lucros, e dando golpe mortal nos princípios da concorrência e inovação.

Voltemos à nossa Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Perto de completar seus 20 anos, exibe uma ficha corrida de bons serviços no sentido de dar segurança à população no consumo dos produtos e serviços por ela regulados. Saímos da época da célebre pílula de farinha para uma atualidade em que não se conhece mais fábricas de falsificação de medicamentos em território nacional. Temos total garantia que os produtos que consumimos no Brasil têm qualidade.

E observem que nos últimos anos a Anvisa tem sofrido constantes teste, lembrem-se da pílula do câncer, dos anorexígenos, das liberações de importações sem a aprovação da licenças, e outros casos menos conhecidos que acontecem cotidianamente. Mas essa lista de bons serviços é suficiente? Não, em absoluto!

Temos de admitir que a Anvisa ainda não está preparada para as demandas do porvir. Existem necessidades de várias ordens, mas a maior preocupação deve ser a matriz CONCEITUAL, o marco regulatório, o modelo de atuação. Daí decorre todo o resto. Nos países com vigilância sanitária avançada, primeiro veio a reflexão conceitual, geralmente com a decisão de mudar o grau de dependência do mercado em relação à avaliação da autoridade reguladora.

É preciso pensar numa regulação mais moderna. É de fundamental importância registrar enfaticamente que os modelos atual e passado não foram errados, talvez apenas já tenham contribuído ao máximo, chegado à exaustão. O processo de desenvolvimento de um produto mudou. Os processos produtivos mudarão. A sociedade muda. E as autoridades regulatórias devem mudar para acompanhar tudo isso. Precisamos, como autoridades sanitárias, nos juntarmos, então porque não pensar em aproveitar o trabalho uma das outras? Não se pode pensar em reconhecimentos recíprocos, como nos velhos modelos de cooperação internacional, mas pode-se aproveitar a análise feita por outra autoridade.

Neste ponto, as indagações naturais são: será que podemos migrar para um modelo pós-mercado? Será possível adotar fórmula de menor dependência da regulação da Anvisa?

Depender menos do Estado implica, entre outras coisas, contar com a população para fiscalizar todos os produtos, incluindo os aparatos de comunicação com o cidadão e ferramentas de denúncias e fiscalizações eficientes.

Ressalte-se outro questionamento: não seria possível reduzir a dependência da regulação apenas PARCIALMENTE, ou seja, reduzindo o mecanismo para aqueles segmentos de mercados equilibrados, onde há bastante concorrência entre produtos/serviços e com já consolidada qualidade e segurança? Devemos avaliar nosso processo estatal e verificar a efetividade de ficar analisando itens antes de conceder a autorização de comercialização, diante da enormidade de produtos desenvolvidos todos os dias.

Por outro lado, a avaliação do modelo de atuação pós-mercado precisa fortemente de redes de laboratórios de checagem muito eficientes. O sistema de pós-mercado é de maior custo. Mas muitas vezes surge como melhor solução diante dos gargalos terríveis criados pelo modelo pré-mercado – que cria “filas” de registro de produtos e serviços, que por vezes duram anos! E, com isso, perdem-se inovações cruciais às empresas e à sociedade…

Assim, escolher-se o modelo de pré mercado significa ter uma quadro de técnicos e modelos de análise que deem conta dessa, e assim queremos, já que está diretamente relacionada ao crescimento do país, infindável demanda. Porém todos nós também sabemos da limitação dessa gestão pelos modelos do estado brasileiro de hoje. Desde a dificuldade de ter quadros móveis de servidores, até mudanças de processos de trabalho. Neste pé, mais uma vez mostra-se necessário refletir sobre o modelo regulatório que melhor se encaixa no Brasil.

Então como escolher o modelo mais adequado? A resposta não é simples. A meu ver, passa antes por uma percepção do mercado que se regula e do atual nível de compliance do setor produtivo, além de uma necessidade de comunicação clara do modelo junto à população.

Alguns críticos poderiam ver nisso a famosa expressão do “Estado mínimo”, nome depreciativo que remete a uma suposta perda de qualidade na ação estatal. Mas façamos um raciocínio sobre o sistema de pesos e contrapesos do modelo pós-mercado, partindo do pressuposto que ele aumenta em muito a parcela de responsabilidade do empresariado sobre o processo produtivo.

Num mundo com informações cada vez mais ágeis, incluindo a imprensa, e com os possíveis efeitos manada de investidores nas bolsas de valores, quanto custaria a uma empresa a retirada de produto por desvio de qualidade? Por outro lado, os defensores do pós-mercado argumentam que esse modelo induz cada vez mais a uma auto fiscalização pelos fabricantes.

Muito mais fatores devemos considerar: o tamanho da economia, a pujança e competitividade de cada segmento de mercado, a capacidade de cada setor de desenvolver tecnologias e inovações, os índices de fiscalização dos parques fabris e o grau de compliance entre os fabricantes…

Muitas perguntas a serem respondidas, mas uma conclusão é certa: o modelo brasileiro precisa ser reavaliado urgentemente. O importante é enfrentar essa discussão! A vigilância sanitária não pode ser trava ao desenvolvimento.

O risco sanitário é eficientemente controlado hoje. Mas é preciso evoluir para continuar fornecendo essa segurança.

Renato Porto – Diretor da ANVISA


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