O documento da UNCTAD diz que
a hiperglobalização não resultou em um mundo de “ganha-ganha”. Mas nem o recuo
ao nacionalismo nostálgico nem a duplicação do apoio ao livre comércio fornecem
a resposta correta, segundo o relatório.
A economia mundial permanece
em terreno instável uma década depois da crise financeira de 2008, com as
guerras comerciais aparecendo como um sintoma de um mal-estar mais profundo,
segundo o relatório publicado nesta quarta-feira (26) pela Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD).
Segundo o Relatório de
Comércio e Desenvolvimento 2018: Poder, Plataformas e Ilusão do Livre Comércio,
enquanto a economia global teve uma retomada desde o início de 2017, o
crescimento permanece espasmódico, e muitos países estão operando abaixo do
potencial. Este ano é improvável haver uma mudança nessa engrenagem.
“A economia mundial está
novamente sob estresse”, disse Mukhisa Kituyi, secretário-geral da UNCTAD. “As
pressões imediatas estão aumentando em torno da escalada de tarifas e fluxos
financeiros voláteis, mas por trás dessas ameaças à estabilidade global está um
fracasso mais amplo — desde 2008 — de lidar com as desigualdades e
desequilíbrios de nosso mundo hiperglobalizado”.
O relatório analisa as
tendências econômicas atuais e as principais questões de política internacional
e faz sugestões para abordá-las. O documento de 2018 examina como o poder
econômico está sendo concentrado em um número menor de grandes empresas
internacionais, e o impacto que isso está tendo na capacidade dos países em
desenvolvimento de se beneficiarem de sua participação no sistema de comércio
internacional e ganhar com novas tecnologias digitais.
O documento afirma que muitos
países avançados, desde 2008, abandonaram as fontes internas de crescimento para
as externas, mais notavelmente com a reviravolta da zona do euro de um déficit
para uma região de superávit. Mas isso só pode funcionar com a demanda interna
de outros países — e, entre os países que dependem da demanda doméstica, muitos
estão contando com uma combinação de dívida mais alta e bolhas de ativos em vez
de aumentar os salários. Em ambos os casos, o crescimento é dificultado pela
ameaça sempre presente de instabilidade financeira.
As maiores economias
emergentes estão indo melhor neste ano, diz o relatório, e os exportadores de
commodities podem esperar uma melhora, enquanto os preços permanecem firmes.
Com exceção da Rússia, o crescimento nos outros quatro países do BRICS —
Brasil, Índia, China e África do Sul — depende muito da demanda interna.
No entanto, esse não é o caso
de muitas outras economias emergentes. Com os riscos negativos aumentando e as
linhas de falhas financeiras se ampliando em vários países, o relatório vê as
nuvens de tempestade se reunindo. O estoque atual de dívida é de 250 trilhões
de dólares — 50% mais do que no momento da crise e três vezes o tamanho da
economia global. A dívida privada, particularmente a dívida corporativa, tem
estado por trás desse surto de endividamento, mas sem estimular o investimento
das empresas — uma desconexão que causa problemas à frente.
Mesmo que as economias
avançadas não tenham feito o suficiente para reequilibrar a economia global, há
preocupações de que suas políticas monetárias “normalizadoras” possam causar
novas ondas de choque por meio dos mercados de capitais e de moedas, com uma
espiral econômica perigosa em economias mais vulneráveis.
“O crescente endividamento
observado globalmente está intimamente ligado ao aumento da desigualdade”,
disse Richard Kozul-Wright, principal autor do relatório. “Os dois têm sido
conectados pelo crescente peso e influência dos mercados financeiros — uma
característica definidora da hiperglobalização”.
O comércio global continua a
ser dominado pelas grandes empresas diante de sua organização e controle das
cadeias de valor globais. Em média, 1% das empresas exortadoras respondem por
mais da metade das exportações de cada país.
A disseminação dessas cadeias
contribuiu para um rápido crescimento do comércio de meados dos anos 1990 até a
crise financeira, com os países em desenvolvimento apresentando o crescimento
mais rápido, inclusive negociando mais uns com os outros.
Mas o relatório mostra que os
países tiveram que negociar mais intensamente para gerar o mesmo crescimento da
produção na comparação com o passado, e que muito desse comércio foi desigual,
com ganhos distorcidos em favor de empresas líderes através de uma mistura de
maior concentração de mercado e controle de ativos intangíveis.
O relatório documenta um
declínio geral — com a China sendo uma exceção — na participação do valor
agregado das atividades industriais nessas cadeias e um aumento da participação
das atividades de pré e pós-produção; as rendas capturadas nesses extremos da
cadeia tiveram um efeito pronunciado na distribuição em todos os países. “As
empresas superstar são um fenômeno global, e suas estratégias de busca de renda
se estendem por fronteiras”, diz
Richard Kozul-Wright.
Quer signifiquem ou não uma
guerra comercial, as recentes rodadas de aumento de tarifas interromperão um
sistema de comércio desenhado cada vez mais em torno das cadeias de valor,
embora o crescimento do comércio em 2018 provavelmente seja semelhante ao de
2017.
No entanto, as consequências
de qualquer grave escalada poderiam, através de maior incerteza e redução do
investimento, trazer consequências mais prejudiciais a médio prazo, diz o
relatório. Estas podem ser particularmente graves para países que já enfrentam
dificuldades financeiras.
Além disso, como as tarifas
funcionam alterando a lucratividade das empresas nos setores comercializáveis,
elas têm consequências distributivas e afetam a demanda de formas que exigem
uma avaliação cuidadosa.
O relatório inclui projeções
que destacam os possíveis riscos, e conclui que “após décadas experimentando os
limites do ‘livre comércio’, seria trágico abraçar o extremo oposto — uma
guerra de tarifas comerciais — em vez de considerar o que os governos poderiam
fazer, através da coordenação de políticas globais, para evitar a contínua
deterioração da distribuição de renda e do emprego que estão na raiz das crises
econômicas mais recentes”.
O documento diz que a
hiperglobalização não resultou em um mundo de “ganha-ganha”. Mas nem o recuo ao
nacionalismo nostálgico nem a duplicação do apoio ao livre comércio fornecem a
resposta correta, segundo o relatório. Além disso, o livre comércio se mostrou
uma folha ideológica que reduziu o espaço político para os países em
desenvolvimento e cortou as proteções para os trabalhadores e as pequenas
empresas, ao mesmo tempo em que protegeu as tendências de busca de renda das
grandes empresas.
No mundo real, as guerras
comerciais são um sintoma de um sistema econômico e arquitetura multilateral
degradados, diz o relatório, enquanto a doença é um círculo vicioso de captura
política corporativa e crescente desigualdade onde o dinheiro é usado para
ganhar poder político e poder político é usado fazer dinheiro.
“Velhas e novas pressões estão
pesando sobre o multilateralismo”, disse Mukhisa Kituyi. “Em nosso mundo
interdependente, soluções voltadas para dentro não oferecem um caminho a
seguir; o desafio é encontrar maneiras de fazer o multilateralismo funcionar”.
Para evitar repetir os erros
da década de 1930, a UNCTAD sugere o retorno à Carta de Havana, que foi a
tentativa inicial de estabelecer um sistema comercial multilateral gerenciado.
Fazer isso significa assumir muitos novos desafios — desconhecidos pelos
signatários da Carta em 1948 — que exigem cooperação internacional efetiva.
No mínimo, priorizaria três
ações: vincular as discussões sobre comércio a um compromisso de pleno emprego
e salários crescentes, regular o comportamento corporativo predatório e
garantir espaço político suficiente para assegurar que os países possam
gerenciar sua integração de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS).
Foto: Rafael Matsunaga/CC
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