Inovações na saúde, movidas por criatividade, conhecimento, financiamento e competências diversas, atravessam crivos para que se convertam em algo útil oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Passam por análise do órgão regulador – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – a da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS e, posteriormente, pelo escrutínio de diferentes segmentos da sociedade, sobretudo profissionais da saúde e usuários.
Embora esse processo pareça
eminentemente técnico, ele é impregnado, em todas as etapas, por influências
culturais, sociais, éticas e comerciais. Isso resulta em um viés que torna a
balança da avaliação conservadora e avessa a inovações, em especial as mais
radicais. Não se trata de uma peculiaridade brasileira, é assim em vários
países.
Importantes transformações em
outras áreas chegam mais lentamente à saúde. Já temos autonomia em atividades
cotidianas que antes dependiam de profissionais especializados, como
movimentações bancárias, reservas de passagens e hospedagens e até programas de
formação e realização de atividades físicas. Mas as técnicas para diagnóstico,
por exemplo, continuam dependendo da intermediação de técnicos especializados,
mesmo quando há possibilidade de dispensá-la. São poucos os exemplos de
análises clínicas que podem ser executados de forma autônoma: testes de
gravidez, monitoramento de glicemia e, mais recentemente, diagnóstico de HIV.
Neste último caso, a liberação foi consequência de pressões sociais e da
atuação de profissionais que demonstraram as vantagens da autotestagem.
Os argumentos contrários têm
legitimidade quando apontam preocupações com a colheita adequada de material
biológico, os riscos de falta de acurácia, possíveis dificuldades de
interpretação e a necessidade de orientação médica frente aos resultados. No
caso do HIV, especificamente, sempre houve temor de que, diante de um resultado
negativo, as medidas de prevenção fossem negligenciadas, ou que um teste
positivo pudesse desencadear grande sofrimento ou até atitudes desastrosas.
A Resolução de Diretoria
Colegiada 36/2015 da Anvisa, ao tratar dos autotestes, exclui diretamente a
possibilidade de que sejam autorizados para diagnóstico de doenças
transmissíveis e doenças de notificação obrigatória. Há uma brecha para casos
excepcionais, que só foi preenchida para os testes de HIV.
Nestes dois últimos anos,
surgiram diversos autotestes para detecção de antígeno que indica a presença do
SARS-CoV-2, causador da covid-19. Em muitos países, os governos têm estimulado
sua utilização e até fornecido diretamente aos cidadãos para que se testem e
adotem as medidas de isolamento e precaução em casos positivos. Escolas,
universidades, empresas e organizadores de eventos oferecem a possibilidade de
testagem como estratégia de redução do risco de exposição ao vírus em ambientes
coletivos.
As limitações para uso dos
autotestes no Brasil não são técnicas, uma vez que a colheita de material é
simples e a acurácia não é muito inferior à daqueles testes realizados em
laboratórios ou farmácias. Há restrições normativas, que podem ser mudadas caso
haja demanda social. Existe também, é verdade, o risco de que os casos
confirmados não sejam comunicados à vigilância epidemiológica. Entretanto,
dadas as barreiras para acesso a exames nos laboratórios e serviços de saúde,
provavelmente boa parte dessas pessoas não chegaria a passar por exames. É
importante lembrar ainda que a oportunidade dos testes é fundamental para
adoção das medidas de contenção, principalmente o isolamento e a busca de
contatos, que são as pessoas que estiveram próximas do caso confirmado, segundo
critérios estabelecidos em guias específicos. A espera maior do que um dia é
suficiente para inviabilizar tal controle.
Se as medidas de proteção e a
vacinação produzirem o resultado esperado, a incidência de casos, internações e
mortes por covid-19 cairá e provavelmente a doença terá comportamento endêmico,
ou seja, continuará a ocorrer continuamente com números bem menos exuberantes
do que durante a epidemia. Surtos serão frequentes e haverá ainda casos graves
e mortes, a maioria entre as pessoas não vacinadas.
Autotestes podem aumentar a
sensibilidade do sistema de saúde para detectar a presença de infecções, mesmo
que sejam assintomáticas, facilitando a orientação individual e a proteção
coletiva em locais de trabalho, escolas e eventos sociais.
Para além desta pandemia, a
incorporação da cultura da autotestagem pode abrir um capítulo novo na
vigilância de doenças transmissíveis, permitindo que triagem, diagnóstico e
controle sejam feitos com menos barreiras de acesso, logística, prazos e custos
Para além desta pandemia, a
incorporação da cultura da autotestagem pode abrir um capítulo novo na
vigilância de doenças transmissíveis, permitindo que triagem, diagnóstico e
controle sejam feitos com menos barreiras de acesso, logística, prazos e
custos. Com essa mudança de paradigma, doenças como malária, hepatites virais,
sífilis e dengue poderiam ser abordadas com maior efetividade. Além das
adaptações de caráter regulatório, que devem ser propostas à Anvisa, há um
campo aberto para pesquisa e desenvolvimento, em que instituições científicas e
produtores brasileiros podem ter uma participação relevante.
Claudio Maierovitch Pessanha
Henriques
Fundação Oswaldo Cruz – Brasília