Karina Toledo | Agência FAPESP– Com o objetivo de contribuir para o monitoramento e o controle de bactérias
multirresistentes, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e
colaboradores criaram a plataforma One Health Brazilian Resistance (OneBR), que
reúne dados epidemiológicos, fenotípicos e informações genômicas de
microrganismos classificados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como de
“prioridade crítica”, ou seja, aqueles contra os quais se necessita buscar
urgentemente novos antibióticos porque os atualmente disponíveis perderam
efeito.
Até o momento, o banco conta
com dados de aproximadamente 500 patógenos humanos e outros 200 devem ser
adicionados em breve. A iniciativa tem apoio da FAPESP, do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Bill e Melinda
Gates (leia mais em: agencia.fapesp.br/29415/).
“E a plataforma não é restrita
a bactérias que infectam seres humanos. A iniciativa incorpora também a área
veterinária, ou seja, agentes infecciosos de animais de criação ou domésticos;
e também a microbiologia ambiental e dos alimentos. Nos baseamos no conceito de
One Health [saúde única, que propõe a interconexão entre saúde humana, dos
animais e do ambiente que os rodeia]”, diz à Agência FAPESP Nilton Lincopan,
professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) e coordenador do
projeto.
Outra perspectiva do grupo é
incluir dados coletados por colegas latino-americanos. “Estamos conversando com
pesquisadores de Chile, Argentina, Uruguai, Equador, entre outros. Seria mais
interessante monitorar bactérias em nível continental, pois há grande
circulação de pessoas e animais entre os países. A plataforma é como lego.
Construímos a base e, a partir disso, as possibilidades são infinitas”, afirma
Lincopan.
O acesso ao material é
gratuito, on-line e não requer cadastro ou autorização. Basta entrar no site e
navegar. Entre as informações disponíveis estão: o local em que o patógeno foi
isolado (com dados de geolocalização do hospital ou serviço de saúde), dados
clínicos do paciente (se a bactéria foi isolada da pele ou do sangue, por
exemplo; em que data; que tipo de doença causou; quais medicamentos foram
administrados; se o paciente foi hospitalizado etc.), dados epidemiológicos
(número de casos registrados e distribuição geográfica, por exemplo) e a sequência
completa do genoma bacteriano, com destaque para os principais genes de
resistência e virulência – informações que podem ajudar o médico a escolher um
antibiótico que tenha eficácia.
Todos os genomas inseridos na
base de dados foram sequenciados pela equipe de Lincopan. Os isolados
bacterianos enviados por colaboradores de todo o Brasil estão armazenados em um
biorrepositório sediado na USP.
“Vamos supor que uma bactéria
multirresistente seja detectada em um paciente de Recife. O profissional de saúde
busca na plataforma e descobre que esse mesmo clone foi isolado em um hospital
de São Paulo no ano anterior. Ele poderá perguntar se o paciente esteve
internado nesse hospital e, em caso positivo, avisar a instituição sobre a
disseminação e a possível origem do patógeno”, exemplifica o pesquisador.
O big data reunido na
plataforma pode ser útil não apenas para médicos e equipes de vigilância
sanitária, como também para veterinários, biólogos, engenheiros ambientais e
pesquisadores ligados à área de biotecnologia, avalia Lincopan.
“É possível, por exemplo,
buscar marcadores moleculares que possibilitem o desenvolvimento de kits para
diagnóstico. Outra aplicação que estamos explorando, com colegas da área de
inteligência artificial [IA], é a automatização do antibiograma com base nos
dados genômicos”, conta.
Como explica o pesquisador, o
antibiograma é um teste que se faz para descobrir a quais antibióticos uma
bactéria é suscetível. Hoje a técnica envolve o cultivo in vitro do
microrganismo, em um processo que leva até 48 horas. Com o dado genômico e
técnicas de IA, seria possível obter essa informação no mesmo dia do
diagnóstico.
Desafio global
A OMS divulgou em 2017 a
primeira lista de “agentes patogênicos prioritários” resistentes aos
antibióticos – um catálogo de 12 famílias de bactérias que representam a maior
ameaça para a saúde humana. A lista foi elaborada numa tentativa de orientar e
promover a pesquisa e o desenvolvimento de novos antibióticos, como parte dos
esforços para enfrentar a crescente resistência global aos medicamentos
antimicrobianos.
A lista da OMS é dividida em
três categorias de acordo com a urgência em que se necessitam novos
antibióticos: prioridade crítica, alta ou média.
O grupo mais crítico de todos
inclui bactérias multirresistentes, que são particularmente perigosas em
hospitais, casas de repouso e entre os pacientes cujos cuidados exigem
processos invasivos, como ventilação mecânica e cateteres intravenosos. Entre
elas estão Acinetobacter baumannii, Pseudomonas aeruginosa, Enterobacterales
(incluindo Klebsiella pneumoniae, E. coli, Serratia marcescens e Proteus spp). São patógenos que podem
causar infecções graves e se tornaram resistentes a um grande número de
antibióticos, incluindo carbapenemas e cefalosporinas de terceira geração – os
melhores antibióticos disponíveis para tratamento de bactérias
multirresistentes.
O segundo e terceiro nível da
lista – as categorias de prioridade alta e média – contêm outras bactérias que
são cada vez mais resistentes aos fármacos e provocam doenças comuns, como
gonorreia ou intoxicação alimentar causada por Salmonella.
Uma das primeiras análises de
dados genômicos nacionais contidos na plataforma foi liderada pela
pós-doutoranda do ICB-USP Bruna Fuga. Os resultados foram publicados na revista
Microbiology Spectrum, da Sociedade Americana de Microbiologia. O estudo faz um
alerta sobre a rápida disseminação e adaptação de clones internacionais de E.
coli, que apresentam a convergência de um amplo resistoma (conjunto de genes de
resistência aos antimicrobianos) e viruloma (conjunto de genes de virulência),
na interface humana-ambiental-animal no Brasil, o que prospectivamente será um
desafio de saúde única para um cenário pós-pandemia.
Para mais informações sobre a
plataforma OneBR e sobre os estudos já publicados com base nos dados
cadastrados acesse: onehealthbr.com/.
O artigo WHO Critical Priority
Escherichia coli as One Health Challenge for a Post-Pandemic Scenario: Genomic
Surveillance and Analysis of Current Trends in Brazil pode ser acessado em:
journals.asm.org/doi/epub/10.1128/spectrum.01256-21.