MaíraMenezes (IOC/Fiocruz)
Considerada altamente segura,
a vacina contra a febre amarela salva milhares de vidas anualmente,
especialmente durante surtos da doença. No entanto, nem sempre a cobertura
vacinal na população é total e há determinados grupos que não podem receber o
imunizante por causa de possíveis reações adversas, como gestantes, idosos,
pessoas com sistema imunológico debilitado ou que têm alergias a elementos do
ovo (um dos compostos da vacina). Assim, a não imunização representa grave
risco de vida. Sem medicamentos disponíveis contra o vírus, a taxa de óbitos
fica entre 20% e 60% dos casos.
Transmitida por mosquitos
silvestres, como Haemagogus janthinomys, febre amarela causou mais de 700
mortes na epidemia registrada entre 2016 e 2019 no Brasil (foto: Josué
Damacena)
O desenvolvimento de uma
terapia moderna contra a doença pode mudar esse cenário. Em ensaios com
animais, um estudo, com participação do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz),
demonstrou a eficácia de anticorpos sintéticos contra a febre amarela. Em
macacos rhesus, que desenvolvem a doença de forma muito semelhante aos seres
humanos, os compostos testados conseguiram impedir o agravamento da infecção e
prevenir as mortes. Divulgada na revista científica Science
Translational Medicine, a pesquisa foi liderada por duas
instituições americanas: Universidade de Saúde e Ciência do Oregon e
Universidade George Washington. O trabalho contou também com a
participação da Universidade de São Paulo (USP), além de outras instituições
internacionais.
“É um resultado muito
importante porque demonstra que os anticorpos são eficazes num modelo altamente
suscetível”, afirma a pesquisadora Myrna Bonaldo, chefe substituta do
Laboratório de Medicina Experimental e Saúde do IOC/Fiocruz. Segundo a
cientista, a próxima etapa do trabalho deve ser a fabricação de um lote de
anticorpos, seguindo procedimentos de boas práticas de fabricação, para a
realização de testes em humanos. “Se a eficácia for confirmada, será um
tratamento muito importante para os casos de febre amarela grave, em que
aproximadamente metade dos pacientes vai a óbito. Pode ser uma ferramenta
terapêutica para salvar muitas pessoas”, completa Myrna.
Ação contra o vírus circulante
no Brasil
Os anticorpos sintéticos,
chamados de anticorpos monoclonais, são produzidos em laboratório. Essas
moléculas reproduzem a estrutura dos anticorpos produzidos pelo corpo humano
para combater microrganismos invasores. No caso dos anticorpos testados,
as moléculas foram produzidas após os cientistas mapearem 1,2 mil anticorpos
produzidos pelo sistema de defesa de pessoas vacinadas contra a febre amarela.
Para chegar aos melhores
compostos, o estudo começou com uma triagem de 37 moléculas. Nos Estados
Unidos, elas foram testadas contra o vírus vacinal, uma versão atenuada do
vírus africano da febre amarela, usada na fabricação da vacina desde os anos
1930. Também foram avaliadas contra uma linhagem isolada de um paciente do
Senegal em 1965. Capaz de causar doença, essa linhagem é rotineiramente
utilizada em pesquisas.
Os cinco anticorpos mais
eficazes para neutralizar esses vírus foram enviados para o Laboratório de
Medicina Experimental e Saúde do IOC, no campus da Fiocruz, no Rio de
Janeiro. No local, as moléculas foram testadas por Myrna e pela
pesquisadora Lidiane Raphael contra três linhagens isoladas a partir de casos
registrados em surtos recentes no Brasil, sendo um caso no Rio Grande do Sul,
em 2008; um no Rio de Janeiro, em 2016; e um em Goiás, em 2017.
No IOC, pesquisadores
confirmaram que anticorpos monoclonais selecionados são capazes de bloquear
vírus da febre amarela circulantes no Brasil (foto: Josué Damacena)
A etapa foi importante
porque, em um estudo anterior, os cientistas tinham
observado que anticorpos ativos contra o vírus vacinal e linhagens africanas
podem ser menos eficazes contra os vírus brasileiros, que pertencem à linhagem
sul-americana. Na ocasião, os pesquisadores identificaram mutações no
genoma dos patógenos brasileiros, que alteram a estrutura da partícula viral,
dificultando a ação de alguns anticorpos.
Felizmente, na avaliação dos
anticorpos sintéticos selecionados, os resultados foram positivos. As cinco
moléculas conseguiram bloquear o vírus circulante no Brasil. “A vacina funciona
muito bem porque ela induz um repertório de anticorpos. Então, mesmo que alguns
atuem menos contra os vírus brasileiros, outros fornecem proteção. Mas, para
desenvolver uma terapia, precisamos de anticorpos capazes de atuar isoladamente
contra os diferentes vírus. Foi isso que identificamos”, comentou Myrna.
Proteção contra doença grave
A partir dos resultados em
laboratório, duas moléculas seguiram, então, para os ensaios em animais,
realizados nos Estados Unidos. Os primeiros testes foram realizados com hamsters,
considerados como modelos para estudo da doença. Com o sucesso da terapia nos
roedores, foram conduzidos ensaios em macacos, que são afetados pela febre
amarela de forma parecida com os seres humanos.
Os dois anticorpos testados
foram efetivos. Todos os dez macacos tratados sobreviveram à infecção e nenhum
apresentou danos no fígado – órgão altamente afetado pelo vírus. A presença do
vírus da febre amarela no sangue dos primatas também se tornou
indetectável.
Durante a realização dos
testes, dois macacos não receberam o tratamento e foram considerados como
controles. Além disso, os pesquisadores incluíram, no grupo controle, dados de
seis primatas, que tinham sido infectados utilizando os mesmos métodos em um
estudo anterior. Dessa forma, minimizaram o uso de animais na pesquisa,
respeitando critérios éticos.
Confirmando a gravidade da
febre amarela na ausência de tratamento, nesse grupo de oito animais, sete
desenvolveram doença grave. Para os autores do estudo, os resultados
indicam que os anticorpos monoclonais testados podem salvar vidas e devem
seguir para o desenvolvimento clínico de uma terapia, com testes em seres
humanos.
Avanço biotecnológico
Os anticorpos monoclonais são
um tipo de medicamento moderno. O primeiro tratamento desse tipo chegou ao
mercado em 1986, sendo usado para reduzir a chance de rejeição de órgãos transplantados.
Demorou para que outras moléculas fossem produzidas, mas a partir dos anos
2000, o número de formulações disponíveis se tornou cada vez maior. Em 2021, a
agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos aprovou o centésimo
remédio desse tipo.
A maior parte dos anticorpos
monoclonais já aprovados mira o tratamento do câncer. Algumas formulações são
voltadas para doenças infecciosas. Durante a pandemia de Covid-19, por exemplo,
anticorpos monoclonais foram desenvolvidos para combater o Sars-CoV-2. Os
remédios também são usados contra a inflamação nos casos graves da doença.
Embora tenham grande
potencial, os anticorpos sintéticos trazem um desafio: o alto custo de
produção. Neste contexto, os autores da pesquisa apontam que, além do risco de
morte, casos graves de febre amarela podem levar a quadros de hepatite
fulminante. Em 2018, cinco transplantes de fígado foram realizados em São Paulo
por causa da doença.
Os cientistas dizem que,
considerando os custos nos Estados Unidos, a produção inicial dos anticorpos
custaria o equivalente ao valor de dez transplantes. “É um produto caro, mas o
preço é viável para um fármaco. Com o incremento nessa área nos últimos anos,
ainda mais após a Covid-19, produzir um anticorpo monoclonal é muito mais viável
hoje do que era há dez anos”, diz Myrna.
Importância da vacinação
Na última epidemia registrada
no Brasil, entre 2016 e 2019, cerca de 2,2 mil casos foram registrados e 759
pessoas morreram. Myrna destaca que a baixa cobertura vacinal alimentou a
epidemia, contribuindo para o grande número de mortes.
Fabricada por
Bio-Manguinhos/Fiocruz, a vacina da febre amarela é oferecida gratuitamente
pelo SUS (foto: Rodrigo Méxas/Fiocruz Imagens)
“Existe a vacina. Ela é
extremamente eficaz e continuará sendo a principal medida contra a febre
amarela mesmo com o desenvolvimento de uma terapia”, ressalta a pesquisadora,
acrescentando que o tratamento visa ampliar o arsenal contra a doença.
“Além dos casos de pessoas
que, por algum motivo, não se vacinaram, a doença pode irromper numa área nova,
onde não havia recomendação de uso da vacina. Também existem alguns indivíduos
que desenvolvem uma resposta imune menos duradoura após a vacinação. Nesses
casos, a disponibilidade da imunoterapia é muito interessante”, enumera Myrna.
A vacina da febre amarela é
oferecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e recomendada, pelo
Ministério da Saúde, em todo o território brasileiro. As crianças devem receber
a primeira dose aos nove meses e um reforço aos 4 anos. Todo adulto que ainda
não recebeu a vacina ou foi vacinado antes dos cinco anos deve se vacinar.
O imunizante é contraindicado
apenas para pessoas com alergia grave a ovo e com imunidade reduzida, como pessoas
que vivem com HIV e têm contagem de células CD4 menor que 350, que estão em
tratamento com quimioterapia ou radioterapia, que possuem doenças autoimunes ou
fazem tratamento com imunossupressores.