As tarefas de diagnosticar uma
doença e de prescrever um tratamento com base em informações escritas ativam no
cérebro dos médicos os mesmos circuitos neuronais usados por qualquer pessoa
para nomear objetos ou animais.
Pesquisadores da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) chegaram a essa conclusão após
avaliar o funcionamento cerebral de 31 clínicos por meio de exames de
ressonância magnética funcional – tecnologia que permite detectar variações no
fluxo sanguíneo em resposta à atividade neural.
Os resultados da
pesquisa, apoiada pela FAPESP, foram publicados em
maio na revista Scientific Reports, do grupo Nature.
“Também identificamos neste
trabalho mecanismos que podem levar a uma conclusão diagnóstica prematura. Esse
tipo de informação pode contribuir para o desenvolvimento de ferramentas
capazes de reduzir esse tipo de erro na prática médica”, disse Marcio Melo,
pesquisador do Laboratório de Informática Médica da FMUSP e primeiro autor do
artigo.
Como relatou o cientista, os
participantes do estudo foram submetidos a dois diferentes experimentos. No
primeiro, um conjunto de sintomas era apresentado por escrito e o médico tinha
de identificar a doença a ele relacionada (os sintomas febre, tosse produtiva e
condensação pulmonar, por exemplo, deveriam levar à conclusão de que se tratava
de um caso de pneumonia). Como comparação, eram exibidas informações sobre animais
ou objetos a serem nomeados (miau, animal doméstico e pelo preto, por exemplo,
sugeririam se tratar de um gato).
No segundo experimento, as
telas mostravam o nome de doenças e a tarefa consistia em prescrever o
tratamento mais adequado.
As informações escritas foram
apresentadas por meio de um sistema de espelhos enquanto os participantes do
estudo estavam posicionados dentro do equipamento de ressonância magnética. À
medida que eles executavam as tarefas, imagens do cérebro eram coletadas e as
respostas, gravadas.
“Nossa análise mostra uma
notável semelhança na atividade cortical durante as três tarefas – diagnóstico,
prescrição e nomeação de objetos ou animais –, o que corrobora a nossa hipótese
inicial”, disse Melo.
Como ressaltou o pesquisador,
os achados vão ao encontro dos resultados de um estudo anteriormente publicado pelo grupo na
revista PLoS One – no qual o processo diagnóstico foi
investigado no âmbito visual. No experimento anterior, radiologistas tinham
como tarefa diagnosticar lesões ou identificar animais inseridos em
radiografias do tórax. Como agora, observou-se que as áreas cerebrais ativadas
durante o diagnóstico foram muito semelhantes àquelas acionadas quando se
nomeava animais (Leia mais em: http://agencia.fapesp.br/14964/).
“É importante salientar que,
no estudo atual, respostas com mais de um diagnóstico foram evocadas por 80,7%
dos participantes pelo menos uma vez durante a execução das tarefas. Em
resposta ao sintoma desânimo, por exemplo, um participante respondeu
‘depressão’ e ‘hipotireoidismo’. Isso mostra que um processo complexo, como a
evocação de diagnósticos diferenciais, pode ocorrer em poucos segundos”,
comentou.
Excesso de certeza pode ser
ruim
Tanto o ato de diagnosticar
uma doença como o de prescrever um tratamento são considerados pelo grupo da
USP um processo de tomada de decisão. A incerteza é grande no início, porém, à
medida que as evidências vão se acumulando, um limiar de confiança é atingido e
a decisão é tomada pelo médico.
No experimento realizado, a
tomada de decisão correspondia ao momento em que o médico vocalizava o
diagnóstico ou o tratamento.
Como contou Melo, as imagens
de ressonância mostraram que quando os médicos deparavam com informações
diagnósticas inespecíficas (que podem estar associadas a diversas doenças, como
a febre) aumentava a atividade em um sistema cerebral conhecido como rede
atencional fronto-parietal (RAFP). Porém, se logo no início da tarefa era
apresentada ao participante uma informação fortemente associada a uma doença –
como um exame HIV positivo, por exemplo –, o monitoramento atencional pela RAFP
era reduzido.
De acordo com o pesquisador,
esses dados dão suporte para a hipótese de que a redução no grau de incerteza –
sinalizada pela redução de atividade na RAFP – estaria envolvida no disparo da
tomada de decisão.
“Nossas análises sugerem,
portanto, que a tomada de decisão pode ocorrer de forma prematura caso o
médico, logo de início, tenha contato com uma informação de alto poder
diagnóstico. Um exame que indica uma baixa dosagem de tiroxina, por exemplo,
poderia levar o médico a diagnosticar corretamente hipotireoidismo. A certeza
diagnóstica, por outro lado, pode levar a uma interrupção prematura da investigação
impedindo a detecção de uma depressão associada. A conclusão diagnóstica
prematura é uma causa importante e frequente de erros médicos”, disse Melo.
Para o pesquisador, uma
maneira de prevenir o encerramento prematuro da investigação séria apresentar
ao médico, logo no início, uma lista de opções diagnósticas por meio de um
sistema de suporte computadorizado – que poderia estar acoplado ao prontuário
eletrônico, por exemplo. “Isso aumentaria o grau de incerteza e,
consequentemente, a atenção no processo de avaliação”, opinou.
Outra conclusão importante do
artigo é que, aparentemente, os médicos só tomam consciência de sua decisão
quando começam a verbalizá-la.
Segundo Melo, as imagens
revelaram uma “inesperada e dramática” mudança na atividade cerebral entre os
períodos decisório e o início da vocalização das respostas. “No início da fala
foi detectado um forte aumento de atividade em uma ampla rede de estruturas
cerebrais envolvidas com a consciência e, concomitantemente, com áreas
engajadas no monitoramento auditivo”, contou.
Esse achado, que ocorre em
frações de segundo, só foi possível de ser detectado graças a uma nova
metodologia desenvolvida pelo grupo da FMUSP, que permitiu aumentar a resolução
temporal da análise dos dados de ressonância magnética funcional. No estudo,
uma imagem composta pela superposição de 43 fatias do cérebro com cerca de 3
milímetros cada foi coletada a cada 2,3 segundos.
“Pelo modelo tradicionalmente
usado, a análise seria baseada na média da atividade cerebral nessas 43 fatias.
A inovação consistiu em introduzir no modelo matemático de análise dos dados a
atividade em cada uma das 43 fatias. Isso permitiu a investigação da atividade
cerebral em períodos de 400 milissegundos”, contou Melo.
Os resultados, acrescentou,
indicam que os médicos participantes do estudo necessitavam escutar as próprias
respostas para tomar consciência das suas conclusões diagnósticas.
“Precisaríamos nos ouvir
falando, em voz alta ou na imaginação, para sabermos o que estamos pensando.
Essa ideia já havia sido proposta anteriormente, porém, agora apresentamos a
primeira evidência experimental dessa hipótese. Esse indício ainda precisa ser
corroborado por experimentos que abordem especificamente essa questão e pode
ter uma implicação mais ampla, ajudando a entender como as pessoas de forma
geral tomam consciência do que estão pensando”, concluiu.
O artigo How doctors diagnose diseases and
prescribe treatments: an fMRI study of diagnostic salience pode ser
lido em: https://www.nature.com/articles/s41598-017-01482-0.
Karina Toledo | Agência FAPESP
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