STF dá início à audiência
pública para discutir a descriminalização do procedimento até a 12ª semana de
gravidez. Discussões serão retomadas na segunda-feira. Entre os temas em
exposição estão a liberdade sexual das mulheres e o direito à vida
Com
argumentos contra e a favor, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu início ontem
à audiência pública que discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana
de gestação. De um lado, pesquisadores defenderam a liberdade reprodutiva e
sexual das mulheres. De outro, profissionais referendaram o direito à vida
humana desde a fecundação.
De
acordo com Melania Amorim, do Instituto Paraibano de Pesquisa Joaquim Amorim
Neto, o procedimento por si só é desigual, pois quem tem recursos financeiros
consegue métodos mais seguros. "Elas usam remédio ou vão em clínicas
clandestinas caras, porém, que funcionam com as técnicas necessárias,
minimizando os riscos e reduzindo as complicações. Ou seja, como afirma a Federação
Internacional dos Ginecologistas e Obstetras, o principal fator impeditivo de
amplo acesso ao aborto seguro é a criminalização", completou.
"Meu
questionamento é se a descriminalização é a solução ou um tratamento adequado.
Reivindico a vida da mulher e a extensão da vida dela, que é a da criança, sem
sequelas físicas e depressão. Precisamos de um tratamento digno para a mulher.
Então digo, descriminalizar vai fragilizar muito mais a mulher",
argumentou Rosemeire Santiago, do Centro de Reestruturação para a vida. Na
audiência, foram ouvidas 26 instituições, com 20 minutos de fala cada um. O
assunto volta à Suprema Corte na segunda-feira.
Hiato
de 49 anos
Legalizado
desde 1940, o aborto em casos de estupro e risco de vida para a mãe só foi
realizado, pela primeira vez, em 1989. A história do procedimento se cruza com
a do Hospital Municipal Arthur Ribeiro de Saboya, e com as experiências de
Irotilde Gonçalves, 72 anos. A assistente social esteve na primeira equipe do
centro de saúde a realizar o procedimento no Brasil.
Desde
1981, Irotilde já atendia, no pronto-socorro, mulheres que tentavam provocar o
aborto ilegal e procuravam o atendimento da unidade para tratar as
consequências. À época, ela tinha que pedir autorização judicial para fazer a
interrupção da gestação. No entanto, o resultado demorava a sair e, muitas
vezes, ultrapassava o tempo de gestação possível de realizar o aborto. "Já
estavam no quinto ou no sexto mês. Aí procuravam serviços clandestinos ou
tinham o bebê mesmo sem vontade", lamenta.
Tilde,
como é conhecida pelos amigos da unidade, foi treinada com a equipe por seis
meses até que o primeiro atendimento fosse colocado em prática. O número de
mulheres variava. Em média, eram atendidas duas por mês. Conforme o tempo
passava e o serviço ficava mais conhecido, vieram as ameaças. Com elas, cartas
anônimas, ovos na casa da família de Tilde e palavras de ódio. Mas nada fez com
que desistisse: "Eu não ia parar. Tinha o apoio da minha família para
seguir em frente".
A
assistente social conta que lembra de todos as mulheres que se consultaram com
ela no hospital. Ela era a primeira a receber a paciente, depois passava para a
psicóloga. Assinava um termo de consentimento e marcava a cirurgia. O primeiro
atendimento da assistente foi de uma adolescente, que estava acompanhada da mãe
e de uma advogada. A menina havia sido estuprada na rua e foi informada na Delegacia da Mulher
de que o hospital oferecia a interrupção.
"O
que a mulher quer é se sentir segura. Saber que o outro tem empatia por
ela", afirma Tilde. As pacientes chegam à unidade com uma carga alta de
emoção e de estresse -- saber que passarão por um aborto não é fácil. Às vezes,
conscientes de que querem interromper a gestação, precisam de um ambiente
seguro, para dar espaço à tristeza, sem julgamento, e compartilhar suas
histórias. Costumam falar por horas até que passam para o atendimento
psicológico. "Algumas até desistem de fazer o abortamento. Querem se sentir
menos sozinhas." Durante todos esses anos nos atendimentos às mulheres,
ela conta que nunca viu nenhuma delas morrer ou ficar com sequela.
O
problema é que mesmo em casos de aborto legal, as mulheres podem ser
perseguidas por terceiros. É isso que explica a presidente da Associação
Brasileira de Antropologia (ABA), Lia Zanotta Machado. "Várias pessoas
desse movimento conservador produz ameaças contra os médicos. E você faz uma
campanha para que eles não trabalhem. Assim, o estigma atinge não apenas as
mulheres, mas os profissionais que fazem o aborto legal e seguro",
comentou Zanotta.
De
acordo com o Ministério da Saúde, qualquer hospital com serviço de
obstetrícia e ginecologia pode fazer o aborto legal. Mas o órgão explica que os
profissionais têm o direito de negar atendimento a quaisquer situações que se
sintam "incapazes de realizar o cuidado", cabendo ao serviço de saúde
garantir outro profissional.
O
que está em jogo
As
audiências públicas que ocorrem no STF discutem o pedido de Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF) n° 442, ajuizado pelo PSol em parceria com o
Instituto Anis, que pede a descriminalização até a 12ª semana de gestação.
Atualmente, no Brasil, os artigos 124 e 126 do Código Penal criminalizam a
prática -- exceto em caso de risco de vida da mãe, estupro e feto anencéfalo,
que o próprio STF incluiu em 2012. A audiência segue na segunda-feira.
As
diferenças
Descriminalização
-- ato ou conduta que deixou de ser crime, ou seja, não há mais punição do
âmbito penal, mas ainda pode ser considerada como ilícito civil ou
administrativo, e pode sofrer sanções como multas, prestação de serviços ou
frequência em cursos de reeducação.
Legalização
-- significa que tal ato passou a ser permitido por meio de uma lei, que
pode regulamentar a prática e determinar restrições e condições, bem como
prever punições para quem descumprir as regras estabelecidas pela legislação.
Protesto na Esplanada
No mesmo dia em que o Supremo
Tribunal Federal (STF) começou a audiência pública para debater a
descriminalização do aborto no Brasil, centenas de mulheres foram às ruas. Com
os dizeres "nem presa nem morta", manifestantes criticavam os artigos
do Código Penal que criminalizam o procedimento, exceto em três casos. Elas
ocuparam a área em frente ao STF. "Por aquelas que tombaram e que morreram
pelo aborto inseguro, pelas encarceradas, por aquelas que aguardam leito no
hospital, é por todas nós", gritou uma manifestante. Hoje é a vez do 1°
Congresso Antifeminista discutir e mostrar as opiniões contrárias à
descriminalização. O evento será no Rio. É organizado por personalidades
contrárias à legalização do aborto.
Deborah
Fortuna, Gabriela Vinhal, Colaborou Gabriel Ponte, Correio Brasiliense
Fotos:
José Cruz/Agência Brasil e Carlos Vieira/CB/D.A Press