Fatores genéticos que diminuem
a capacidade da placenta de proteger o feto contra o vírus zika foram descritos
por pesquisadores brasileiros em artigo publicado na revista PLOS Neglected
Tropical Diseases. Segundo os autores, o achado ajuda a entender por que
somente parte dos bebês cujas mães foram infectadas durante a gravidez
nasceu com algum tipo de anomalia.
Dados do Ministério da Saúde
apontam que, desde a epidemia de 2015, ao menos 3,5 mil bebês foram acometidos
pela chamada síndrome congênita do zika, que inclui alterações como
microcefalia, calcificações cerebrais, deficiência auditiva e visual.
Entretanto, estima-se que esses casos correspondam a algo entre 5% e 10% do
total de crianças expostas ao patógeno no primeiro trimestre de gestação – fase
considerada de maior risco.
“Observamos na placenta dos
bebês afetados diferença na expressão de duas classes de genes. Uma delas está
ligada à capacidade da placenta de invadir e se fixar no tecido uterino. A
outra tem a ver com a produção de certas moléculas, conhecidas como
quimiocinas, que atraem células do sistema imune materno para combater o vírus
na barreira placentária”, conta Sergio Verjovski, professor do Instituto de
Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e coordenador da pesquisa, apoiada
pela FAPESP.
A descoberta só foi possível
graças a uma técnica de reprogramação celular que permitiu aos pesquisadores
recriar em laboratório as células que compõem a chamada placenta primitiva, que
dá suporte ao feto no primeiro trimestre da gestação.
Essas células – chamadas
trofoblastos – foram obtidas a partir de amostras sanguíneas de três pares de
gêmeos discordantes, ou seja, casos em que apenas um dos irmãos nasceu com
microcefalia, embora ambos tenham sido igualmente expostos à infecção viral no
útero materno. Por representarem um modelo ideal para o estudo de fatores
genéticos que aumentam a suscetibilidade à síndrome congênita do zika, essas
crianças vêm sendo acompanhadas há cerca de quatro anos por pesquisadores do
Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL) – um Centro
de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP e coordenado
pela professora do Instituto de Biociências da USP Mayana Zatz, coautora do
artigo.
“Primeiro, nós reprogramamos
as células do sangue para que retornassem a um estágio de pluripotência
semelhante ao das células-tronco embrionárias. Em seguida, induzimos in vitro a
diferenciação dessas células pluripotentes induzidas [IPS, na sigla em inglês]
em trofoblastos primitivos”, explica Verjovski.
Foram então criados dois
grupos de células placentárias em cultura: um para simular as placentas
primitivas dos bebês que nasceram com microcefalia e, portanto, foram mais
afetados pelo zika, e outro para representar as placentas dos gêmeos
resistentes à infecção viral.
Todas as culturas foram
infectadas com uma cepa brasileira do vírus (ZIKV-BR), a mesma que circulou no
país durante a epidemia de 2015 e 2016. Em seguida, por meio de técnicas de
sequenciamento, os pesquisadores compararam o transcritoma (conjunto de
moléculas de RNA expressas pelos genes) dos dois grupos. O objetivo foi ver, em
cada caso, de que modo o vírus impactou a expressão gênica das células
placentárias.
“Nos trofoblastos dos bebês
que nasceram com microcefalia observamos uma diminuição na expressão de vários
genes relacionados à matriz extracelular. São genes importantes para que a
placenta, que é um tecido fetal, consiga invadir e se fixar no útero materno.
Esse processo é importante para que a placenta possa nutrir adequadamente o
feto e servir de barreira física contra patógenos e toxinas”, conta Verjovski.
Nas análises feitas 48 e 96
horas após a infecção, os cientistas notaram que somente nos trofoblastos dos
bebês resistentes havia um aumento estatisticamente significativo na expressão
das quimiocinas RANTES/CCL5 (até 4,6 vezes aumentada) e IP10 (até 96 vezes
aumentada).
“Essas moléculas são
importantes sinalizadores para a defesa imune materna na barreira placentária.
Elas atraem para o local células da mãe capazes de destruir o vírus”, explica o
pesquisador.
Os resultados sugerem,
portanto, que a placenta primitiva dos bebês resistentes consegue impedir com
mais eficácia que os tecidos fetais sejam infectados.
“Precisaríamos fazer novos
experimentos para confirmar essa hipótese. Uma das ideias é colocar os
trofoblastos infectados com o zika em contato com amostras de sangue de
mulheres grávidas. Desse modo conseguiríamos observar se, de fato, as células
placentárias dos bebês resistentes conseguem atrair mais células imunológicas
da gestante”, diz Verjovski. “Mas esse não é um experimento fácil de ser feito,
pois é necessário obter amostras de sangue de grávidas que tenham
compatibilidade imunológica com as células dos gêmeos discordantes.”
De qualquer modo, avalia o
pesquisador, a identificação dos genes que estão diferentemente expressos nos
bebês com microcefalia abre caminho para pesquisas voltadas a desenvolver
intervenções capazes de prevenir o dano causado pelo vírus nos fetos em
desenvolvimento. “Acreditamos que seria mais viável um tratamento para reforçar
a barreira placentária e impedir a infecção do feto do que investir, por
exemplo, em um medicamento para bloquear o dano do vírus diretamente no sistema
nervoso fetal”, diz.
Revisão de conceitos
Em um estudo publicado em
2017, na revista PNAS, Verjovski e colaboradores da Universidade do Missouri
(Estados Unidos) mostraram que a placenta primitiva oferece um ambiente
muito mais favorável à infecção pelo zika do que a placenta madura. Isso porque
há, no primeiro trimestre da gestação, expressão aumentada de diversos genes
que codificam proteínas de ligação para o vírus, ou seja, que facilitam a
entrada do patógeno nos tecidos do feto. Por outro lado, a placenta madura
expressa em maior quantidade proteínas associadas à defesa antiviral. Esse
estudo foi feito com trofoblastos primitivos e maduros obtidos também por
reprogramação celular, mas a partir de células-tronco embrionárias (não vieram,
portanto, de crianças que foram expostas ao vírus durante a gestação).
“Naquela época, levantamos a
hipótese de que a placenta primitiva dos fetos suscetíveis ao zika expressava
em maior quantidade os receptores de ligação, fazendo com que esses bebês
fossem expostos a uma carga viral mais alta. Agora refutamos essa teoria
com os novos achados”, conta Verjovski.
Segundo o pesquisador, o
estudo mais recente mostrou que inicialmente a expressão gênica é igual nos
trofoblastos dos gêmeos nasceram com e sem microcefalia, mas se torna diferente
após a infecção viral.
“Por algum motivo ainda não
identificado as placentas dos bebês suscetíveis e resistentes respondem de
forma diferente à entrada do vírus nas células”, afirma.
Outros fatores genéticos
associados a uma maior suscetibilidade à síndrome congênita do zika foram
descritos pela equipe do CEGH-CEL na Nature Communications, em artigo publicado
em 2018. Os pesquisadores mostraram que o zika consegue se replicar muito mais
nas células progenitoras neurais (NPCs) dos bebês com microcefalia do que nas
NPCs de seus irmãos resistentes. Além disso, as células nervosas dos bebês
suscetíveis se proliferavam menos e morriam mais que as dos resistentes. Nesse
caso, as NPCs também foram geradas por reprogramação celular a partir de
amostras sanguíneas dos gêmeos discordantes.
Ao comparar a expressão gênica
nos dois grupos, os cientistas notaram diferenças em duas vias de sinalização
celular importantes para o desenvolvimento cerebral no período embrionário –
uma mediada pela proteína mTOR e outra pela Wnt. São vias que regulam, entre
outros fatores, a proliferação e a migração das células do sistema nervoso
central (leia mais em: agencia.fapesp.br/27083).
Além da genética, outros
fatores já foram associados a um risco aumentado de anomalias fetais, entre
eles a dieta materna, a composição da microbiota intestinal e a exposição da
gestante a poluentes e outros patógenos. Uma das perguntas que permanecem em
aberto é por que em algumas regiões, como o Nordeste brasileiro, o zika
provocou muito mais casos de microcefalia do que em outras que também tiveram
grande circulação do vírus.
“No estudo publicado em 2017,
nós comparamos duas cepas diferentes do zika: uma isolada em Uganda [na África,
onde o vírus surgiu] e outra na Polinésia. Esta última deu origem à linhagem
brasileira. Observamos que a cepa africana era muito mais virulenta na placenta
primitiva. É possível, portanto, que na África não tenham surgido casos de
microcefalia porque as gestantes infectadas sofreram aborto precoce. À medida
que o vírus foi sofrendo mutações que o tornaram menos destruidor, ele
conseguiu se replicar por mais tempo no feto e um maior número de mulheres
infectadas levou a gestação a termo”, diz Verjovski.
O artigo Differential gene
expression elicited by ZIKV infection in trophoblasts from congenital Zika
syndrome discordant twins pode ser lido em https://journals.plos.org/plosntds/article/authors?id=10.1371/journal.pntd.0008424.
Karina Toledo | Agência FAPESP