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quarta-feira, 12 de agosto de 2020

FATORES GENÉTICOS PODEM TORNAR PLACENTA MENOS CAPAZ DE PROTEGER FETO CONTRA O ZIKA

Fatores genéticos que diminuem a capacidade da placenta de proteger o feto contra o vírus zika foram descritos por pesquisadores brasileiros em artigo publicado na revista PLOS Neglected Tropical Diseases. Segundo os autores, o achado ajuda a entender por que somente parte dos bebês cujas mães foram infectadas durante a gravidez nasceu com algum tipo de anomalia.

Dados do Ministério da Saúde apontam que, desde a epidemia de 2015, ao menos 3,5 mil bebês foram acometidos pela chamada síndrome congênita do zika, que inclui alterações como microcefalia, calcificações cerebrais, deficiência auditiva e visual. Entretanto, estima-se que esses casos correspondam a algo entre 5% e 10% do total de crianças expostas ao patógeno no primeiro trimestre de gestação – fase considerada de maior risco.

“Observamos na placenta dos bebês afetados diferença na expressão de duas classes de genes. Uma delas está ligada à capacidade da placenta de invadir e se fixar no tecido uterino. A outra tem a ver com a produção de certas moléculas, conhecidas como quimiocinas, que atraem células do sistema imune materno para combater o vírus na barreira placentária”, conta Sergio Verjovski, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e coordenador da pesquisa, apoiada pela FAPESP.

A descoberta só foi possível graças a uma técnica de reprogramação celular que permitiu aos pesquisadores recriar em laboratório as células que compõem a chamada placenta primitiva, que dá suporte ao feto no primeiro trimestre da gestação.

Essas células – chamadas trofoblastos – foram obtidas a partir de amostras sanguíneas de três pares de gêmeos discordantes, ou seja, casos em que apenas um dos irmãos nasceu com microcefalia, embora ambos tenham sido igualmente expostos à infecção viral no útero materno. Por representarem um modelo ideal para o estudo de fatores genéticos que aumentam a suscetibilidade à síndrome congênita do zika, essas crianças vêm sendo acompanhadas há cerca de quatro anos por pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP e coordenado pela professora do Instituto de Biociências da USP Mayana Zatz, coautora do artigo.

“Primeiro, nós reprogramamos as células do sangue para que retornassem a um estágio de pluripotência semelhante ao das células-tronco embrionárias. Em seguida, induzimos in vitro a diferenciação dessas células pluripotentes induzidas [IPS, na sigla em inglês] em trofoblastos primitivos”, explica Verjovski.

Foram então criados dois grupos de células placentárias em cultura: um para simular as placentas primitivas dos bebês que nasceram com microcefalia e, portanto, foram mais afetados pelo zika, e outro para representar as placentas dos gêmeos resistentes à infecção viral.

Todas as culturas foram infectadas com uma cepa brasileira do vírus (ZIKV-BR), a mesma que circulou no país durante a epidemia de 2015 e 2016. Em seguida, por meio de técnicas de sequenciamento, os pesquisadores compararam o transcritoma (conjunto de moléculas de RNA expressas pelos genes) dos dois grupos. O objetivo foi ver, em cada caso, de que modo o vírus impactou a expressão gênica das células placentárias.

“Nos trofoblastos dos bebês que nasceram com microcefalia observamos uma diminuição na expressão de vários genes relacionados à matriz extracelular. São genes importantes para que a placenta, que é um tecido fetal, consiga invadir e se fixar no útero materno. Esse processo é importante para que a placenta possa nutrir adequadamente o feto e servir de barreira física contra patógenos e toxinas”, conta Verjovski.

Nas análises feitas 48 e 96 horas após a infecção, os cientistas notaram que somente nos trofoblastos dos bebês resistentes havia um aumento estatisticamente significativo na expressão das quimiocinas RANTES/CCL5 (até 4,6 vezes aumentada) e IP10 (até 96 vezes aumentada).

“Essas moléculas são importantes sinalizadores para a defesa imune materna na barreira placentária. Elas atraem para o local células da mãe capazes de destruir o vírus”, explica o pesquisador.

Os resultados sugerem, portanto, que a placenta primitiva dos bebês resistentes consegue impedir com mais eficácia que os tecidos fetais sejam infectados.

“Precisaríamos fazer novos experimentos para confirmar essa hipótese. Uma das ideias é colocar os trofoblastos infectados com o zika em contato com amostras de sangue de mulheres grávidas. Desse modo conseguiríamos observar se, de fato, as células placentárias dos bebês resistentes conseguem atrair mais células imunológicas da gestante”, diz Verjovski. “Mas esse não é um experimento fácil de ser feito, pois é necessário obter amostras de sangue de grávidas que tenham compatibilidade imunológica com as células dos gêmeos discordantes.”

De qualquer modo, avalia o pesquisador, a identificação dos genes que estão diferentemente expressos nos bebês com microcefalia abre caminho para pesquisas voltadas a desenvolver intervenções capazes de prevenir o dano causado pelo vírus nos fetos em desenvolvimento. “Acreditamos que seria mais viável um tratamento para reforçar a barreira placentária e impedir a infecção do feto do que investir, por exemplo, em um medicamento para bloquear o dano do vírus diretamente no sistema nervoso fetal”, diz.

Revisão de conceitos

Em um estudo publicado em 2017, na revista PNAS, Verjovski e colaboradores da Universidade do Missouri (Estados Unidos) mostraram que a placenta primitiva oferece um ambiente muito mais favorável à infecção pelo zika do que a placenta madura. Isso porque há, no primeiro trimestre da gestação, expressão aumentada de diversos genes que codificam proteínas de ligação para o vírus, ou seja, que facilitam a entrada do patógeno nos tecidos do feto. Por outro lado, a placenta madura expressa em maior quantidade proteínas associadas à defesa antiviral. Esse estudo foi feito com trofoblastos primitivos e maduros obtidos também por reprogramação celular, mas a partir de células-tronco embrionárias (não vieram, portanto, de crianças que foram expostas ao vírus durante a gestação).

“Naquela época, levantamos a hipótese de que a placenta primitiva dos fetos suscetíveis ao zika expressava em maior quantidade os receptores de ligação, fazendo com que esses bebês fossem expostos a uma carga viral mais alta. Agora refutamos essa teoria com os novos achados”, conta Verjovski.

Segundo o pesquisador, o estudo mais recente mostrou que inicialmente a expressão gênica é igual nos trofoblastos dos gêmeos nasceram com e sem microcefalia, mas se torna diferente após a infecção viral.

“Por algum motivo ainda não identificado as placentas dos bebês suscetíveis e resistentes respondem de forma diferente à entrada do vírus nas células”, afirma.

Outros fatores genéticos associados a uma maior suscetibilidade à síndrome congênita do zika foram descritos pela equipe do CEGH-CEL na Nature Communications, em artigo publicado em 2018. Os pesquisadores mostraram que o zika consegue se replicar muito mais nas células progenitoras neurais (NPCs) dos bebês com microcefalia do que nas NPCs de seus irmãos resistentes. Além disso, as células nervosas dos bebês suscetíveis se proliferavam menos e morriam mais que as dos resistentes. Nesse caso, as NPCs também foram geradas por reprogramação celular a partir de amostras sanguíneas dos gêmeos discordantes.

Ao comparar a expressão gênica nos dois grupos, os cientistas notaram diferenças em duas vias de sinalização celular importantes para o desenvolvimento cerebral no período embrionário – uma mediada pela proteína mTOR e outra pela Wnt. São vias que regulam, entre outros fatores, a proliferação e a migração das células do sistema nervoso central (leia mais em: agencia.fapesp.br/27083).

Além da genética, outros fatores já foram associados a um risco aumentado de anomalias fetais, entre eles a dieta materna, a composição da microbiota intestinal e a exposição da gestante a poluentes e outros patógenos. Uma das perguntas que permanecem em aberto é por que em algumas regiões, como o Nordeste brasileiro, o zika provocou muito mais casos de microcefalia do que em outras que também tiveram grande circulação do vírus.

“No estudo publicado em 2017, nós comparamos duas cepas diferentes do zika: uma isolada em Uganda [na África, onde o vírus surgiu] e outra na Polinésia. Esta última deu origem à linhagem brasileira. Observamos que a cepa africana era muito mais virulenta na placenta primitiva. É possível, portanto, que na África não tenham surgido casos de microcefalia porque as gestantes infectadas sofreram aborto precoce. À medida que o vírus foi sofrendo mutações que o tornaram menos destruidor, ele conseguiu se replicar por mais tempo no feto e um maior número de mulheres infectadas levou a gestação a termo”, diz Verjovski.

O artigo Differential gene expression elicited by ZIKV infection in trophoblasts from congenital Zika syndrome discordant twins pode ser lido em https://journals.plos.org/plosntds/article/authors?id=10.1371/journal.pntd.0008424.

Karina Toledo | Agência FAPESP

 

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