AUTORCESAR BAIMA
IMAGEMARTE IQC
O médico francês responsável
pelo estudo fraudulento que promoveu a cloroquina como possível tratamento para
a COVID-19 continua a ser alvo de investigações por má conduta científica.
Desta vez, Didier Raoult teve nada menos do que 48 artigos com sua coautoria
sinalizados como suspeitos pela editora
PLOS, que apura potenciais violações éticas nos estudos, informou o site Retraction Watch, que monitora este tipo de
ação.
A decisão da PLOS é resultado
do trabalho da microbiologista holandesa Elisabeth Bik, que se tornou conhecida
no meio acadêmico por suas investigações de casos de má conduta científica. Em
agosto de 2021, ela publicou em seu blog denúncia de que pelo menos 17
estudos conduzidos ao longo de dez anos por pesquisadores do hospital
universitário Méditerranée Infection (IHU-Méditerranée Infection) – fundado por
Raoult – e da Universidade de Aix-Marseille – onde o médico francês lecionava –
com a população de rua da cidade francesa de Marselha reaproveitavam todos um
mesmo documento de aprovação dos órgãos franceses que fiscalizam a ética de
pesquisas envolvendo seres humanos, sendo que o correto seria buscar uma
aprovação específica para cada trabalho.
O número de artigos de Raoult
sob suspeita e que podem vir a ser retratados – isto é, removidos da literatura
científica – publicados sob a égide da PLOS, no entanto, pode crescer ainda
mais. Em nota ao Retraction Watch, a editora informou que a decisão de colocar
49 artigos sob suspeita (um deles não tem a assinatura de Raoult) faz parte de
uma investigação mais ampla envolvendo mais de cem estudos, muitos deles tendo
o médico francês como coautor.
Segundo a PLOS, a apuração revelou outros problemas para além do reuso
das aprovações éticas, incluindo “autoria prolífica”, em que alguns
pesquisadores assinavam artigos a um ritmo de até um a cada três dias, o que
põe em dúvida se seus nomes cumpriam os critérios de inclusão de autoria da
editora, e a falha em declarar conflitos de interesse com empresas
farmacêuticas. Dos 49 artigos agora com a chamada “expressão de preocupação” (expression
of concern, na linguagem acadêmica), 28 foram publicados no periódico PLOS
ONE, carro-chefe da editora, entre 2010 e 2020; 19 no PLOS
Neglected Tropical Diseases, entre 2011 e 2012; um na PLOS Genetics,
em 2018; e outro no PLOS Pathogens em 2008.
Esta também não é a primeira
vez que Raoult se vê às voltas com suspeitas em torno de seu trabalho. Ainda no
início da pandemia de COVID-19, diversos especialistas apontavam graves falhas
no estudo que usou para promover a cloroquina como tratamento da doença – entre
eles, Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), que
publica esta Revista Questão de Ciência, como se pode ver aqui e aqui.
O escrutínio subsequente do
trabalho de Raoult revelou outras violações éticas. Em junho de 2021, a Agência
Nacional de Segurança de Medicamentos e Produtos para a Saúde da França (ANSM,
na sigla em francês) – o equivalente à brasileira Anvisa – anunciou sanções contra o IHU-Méditerranée e o médico francês por
não terem buscado aprovação ética de estudo sobre doenças associadas a viagens
e patógenos multirresistentes em que estudantes de medicina da própria
instituição tinham que coletar amostras da vagina e do ânus quando viajavam
para fora da França.
Mas um caso pior ainda estava
para surgir. Em outubro de 2021, o site de notícias francês Mediapart informou
que desde 2017 o IHU-Méditerranée, sob a direção de Raoult, conduziu um “experimento selvagem” com pacientes de tuberculose
que resultou em “graves complicações” para alguns deles. Segundo a
denúncia, além de não ter autorização ética para experimentação com seres humanos,
o pretenso ensaio clínico com uma combinação de quatro antibióticos contra a
doença não tinha como avaliar a eficácia conjunta dos medicamentos, mas acabou
por produzir um quadro de insuficiência renal grave em ao menos um dos
pacientes tratados, muitos deles menores de idade, pessoas em situação de rua e
imigrantes ilegais.
Relatório do caso feito pela
ANSM foi enviado à Justiça da França, e em abril do ano passado a Procuradoria de Marselha anunciou a abertura de inquérito
penal para investigar e eventualmente processar possíveis crimes de
falsificação e fraude de documentos e aplicação de procedimentos médicos
injustificados.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência
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