Um
ensaio clínico recrutou algumas das mentes mais brilhantes da Inglaterra
--atraídos pela curiosidade e dinheiro-- para testar a nova vacina contra a
febre tifoide
"Fiquei
curioso." É assim que James M. Duggan, estudante de medicina da Universidade
Oxford, explica por que concordou em engolir uma grande dose de bactérias
causadoras da febre tifoide.
"Pode
soar estranho, mas como aluno de medicina, é bem interessante passar pelo
processo de ficar muito doente. Ajuda a ter empatia pelos pacientes",
afirma.
Duggan,
33, não entrou em uma onda autodestrutiva. Assim como mais de 100 outros
residentes de Oxford, na Inglaterra, ele decidiu participar de um teste de uma
nova vacina contra a febre tifoide.
A
febre tifoide, causada pela bactéria Salmonella typhi e disseminada nos
alimentos e na água, mata quase 200 mil pessoas por ano, muitas delas crianças
pequenas, na África, Ásia e América Latina. Aqueles que sobrevivem podem sofrer
com intestino perfurado, problemas cardíacos e outras complicações.
A
vacina experimental foi um grande sucesso. Os resultados do teste foram
publicados na quinta-feira (5) no periódico "The Lancet": a vacina se
mostrou efetiva em 87% dos casos.
Essa
é a única vacina efetiva que também é segura para crianças. Ela já é produzida
de maneira barata e está sendo usada amplamente na Índia. O Grupo de Vacinas de
Oxford, que organizou o teste, e a Fundação Bill & Melinda Gates, que pagou
por ele, esperam que a Organização Mundial de Saúde aprove a
vacina em breve.
"São
resultados ótimos. E esses testes de desafio são uma maneira excelente de
encurtar o processo de provar que uma vacina funciona", afirma Anita
Zaidi, diretora de doenças diarreicas da fundação.
"Se
tivéssemos feito isso em campo, precisaríamos acompanhar as crianças por três
ou quatro anos."
Por
que dizer sim?
Os
chamados testes de desafio envolvem dar aos participantes uma vacina
experimental e depois infectá-los deliberadamente com a doença para ver se
estão protegidos.
Esses
testes só têm permissão para ser feitos com doenças que podem ser curadas
rápida e completamente, como cólera e malária, ou com aquelas, como a gripe
sazonal, que normalmente não prejudicam adultos saudáveis.
Ainda
assim, havia uma boa chance de os participantes de Oxford sofrerem com a febre
tifoide por vários dias até que os antibióticos começassem a funcionar.
Então,
o que motivou as dezenas de britânicos bem-educados a tomar um frasco cheio de
germes que tornaram Typhoid Mary famosa? Em entrevistas, eles deram várias
razões.
Alguns,
como Duggan, ficaram curiosos. Outros queriam ajudar as pessoas pobres. E
outros ainda estavam interessados principalmente no dinheiro.
Os
participantes que seguiram todos os passos, o que incluía registrar suas
temperaturas on-line, fazer visitas diárias à clínica e fornecer amostras de
sangue e de fezes regularmente, receberam cerca de US$ 4.000 (cerca de R$
12.600).
Todos
disseram entender os riscos.
A
febre tifoide conseguiu sua terrível reputação em uma era anterior aos
antibióticos, mas hoje ela pode ser facilmente curada com antibióticos comuns,
como ciprofloxacina ou azitromicina.
Todos
os participantes precisavam ser adultos saudáveis, com idade entre 18 e 60 anos
e passar por exames de ultrassom que comprovassem que suas vesículas biliares
não tinham pedras. (A bactéria pode persistir por décadas agarrada aos cálculos
biliares -- que é provavelmente a maneira pela qual Typhoid Mary, trabalhando
como cozinheira em casas chiques e em uma maternidade, infectou tantas pessoas
entre 1900 e 1915 sem nunca ficar doente.)
Os
participantes tiveram experiências muito diferentes.
Duggan
ficou três dias doente, com sintomas de gripe. "Gripe de verdade, daquelas
que você não quer sair da cama", conta. Sua temperatura chegou a quase 39º
Celsius, e ele teve dores nas articulações e muita dor de cabeça.
Assim
que um exame de sangue provou que tinha a febre tifoide, ele recebeu os
antibióticos; e não foi liberado do tratamento até que três exames de sangue e
fezes mostraram que estava fora de perigo.
Depois,
ficou sabendo que havia caído no grupo que recebeu o placebo do teste, ou seja,
tinha tomado uma vacina contra meningite. (Conselhos de ética modernos não
aprovam os placebos de açúcar inúteis.)
Nick
J. Crang, 24, aluno de pós-graduação de Proteômica, também recebeu o placebo.
Mas, de alguma maneira, não ficou doente, mesmo depois de participar de dois
desafios de febre tifoide com um intervalo de um ano.
"Descobriram
que tenho uma imunidade inata para febre tifoide", conta ele.
E
ele se sente sobre-humano? "Não, sou o rato de laboratório que estraga os
números."
Ele
até deu amostras extras de sangue para os pesquisadores, que ficaram curiosos a
respeito de seu sistema imunológico.
As
doses de bactéria foram oferecidas por enfermeiras usando aventais de plástico,
luvas e cobertura nas faces para evitar a contaminação. Os participantes também
usaram aventais e óculos e tomaram uma bebida com bicarbonato antes para
neutralizar o ácido do estômago.
Mas
não havia recipientes fumegantes como os dos filmes de Vincent Price. "Foi
tudo muito simples. Foi servido em um tubo típico de laboratório. Esperava que
teria um gosto mais de tifoide. Não como fezes, quero dizer -- as coisas que
fazem as fezes terem o cheiro característico são bactérias completamente
diferentes", afirma Daina Sadurska, 26.
"Mas
esperava alguma coisa. Várias culturas têm um odor típico. Era límpido, acho, e
não tinha um gosto específico."
Sadurska
nunca ficou doente e depois descobriu que havia tomado a vacina. Ela teve uma
razão única para participar: sua bisavó e uma de suas tias morreram durante uma
epidemia de febre tifoide na Letônia durante a Primeira Guerra Mundial.
"Quando
contei para a minha mãe que ia participar, ela me lembrou desse episódio.
Quando me inscrevi, pensei, 'Por que estou fazendo isso?' Mas sou bióloga.
Todos os tipos de monstros são muito menos assustadores quando você sabe mais
sobre eles", diz.
Os
US$ 4.000 também foram "muito bem-vindos", segundo ela. Os alunos de
Oxford recebem apenas US$ 17.600 (cerca de R$ 55.500) por ano para viver em uma
cidade com o custo de vida quase igual ao de Londres.
Sadurska
e Crang, seu namorado, usaram o dinheiro para visitar a Croácia, Israel e a
família dela na Letônia. Os dois já se inscreveram para um segundo teste de
vacina que vai pagar por sua cirurgia ocular a laser e por uma viagem para a
Austrália.
Faye
Francis, enfermeira psiquiátrica de 42 anos, diz que se sentiu feliz de fazer
alguma coisa que pode ajudar milhões de pessoas que não têm acesso aos
antibióticos.
"Mas
não vou mentir, o dinheiro contou muito", confessa.
Ela
usou a quantia para fazer, com o marido e os três filhos, uma viagem de férias
para Cornualha e comprar algumas coisas para o carro e a casa.
Sua
mãe não ficou muito feliz. "Ela disse, 'Isso é ridículo -- não pense no
dinheiro, pense em sua saúde'. E as pessoas ficaram me contando as histórias de
horror que viram na TV. Então nem falei mais sobre o assunto com meus pais
depois disso", conta ela.
Ela
ficou doente e se sentiu horrível por cerca de uma semana, com 38º de febre,
dores de cabeça e náuseas.
"Mas
fui trabalhar. Eu me senti culpada de não ir porque era uma doença que eu mesma
me dei", diz ela.
Como
seu trabalho é distribuir medicamentos em visitas domiciliares, seus pacientes
não correram riscos, afirma. (Duggan, o estudante de medicina, também disse que
participou em um período em que não precisava fazer rondas nos hospitais.)
"Eles
não deixam a pessoa participar se tem filhos em idade pré-escolar ou menores. E
você não pode mexer com alimentos, então meu marido cozinhou", conta
Francis.
Durante
a pior semana, ela se sentiu com pena de si mesma e jurou nunca mais fazer algo
parecido. "Mas é como um parto, a gente fica com amnésia e faz de novo.
Acabei de me inscrever para um novo teste."
Donald
G. Mcneil Jr, OMS | UOL Notícias