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domingo, 8 de outubro de 2017

Você toparia ser cobaia em testes de vacina? Há quem diga SIM

Um ensaio clínico recrutou algumas das mentes mais brilhantes da Inglaterra --atraídos pela curiosidade e dinheiro-- para testar a nova vacina contra a febre tifoide

"Fiquei curioso." É assim que James M. Duggan, estudante de medicina da Universidade Oxford, explica por que concordou em engolir uma grande dose de bactérias causadoras da febre tifoide.

"Pode soar estranho, mas como aluno de medicina, é bem interessante passar pelo processo de ficar muito doente. Ajuda a ter empatia pelos pacientes", afirma.
Duggan, 33, não entrou em uma onda autodestrutiva. Assim como mais de 100 outros residentes de Oxford, na Inglaterra, ele decidiu participar de um teste de uma nova vacina contra a febre tifoide.

A febre tifoide, causada pela bactéria Salmonella typhi e disseminada nos alimentos e na água, mata quase 200 mil pessoas por ano, muitas delas crianças pequenas, na África, Ásia e América Latina. Aqueles que sobrevivem podem sofrer com intestino perfurado, problemas cardíacos e outras complicações.

A vacina experimental foi um grande sucesso. Os resultados do teste foram publicados na quinta-feira (5) no periódico "The Lancet": a vacina se mostrou efetiva em 87% dos casos.
Essa é a única vacina efetiva que também é segura para crianças. Ela já é produzida de maneira barata e está sendo usada amplamente na Índia. O Grupo de Vacinas de Oxford, que organizou o teste, e a Fundação Bill & Melinda Gates, que pagou por ele, esperam que a Organização Mundial de Saúde aprove a vacina em breve.

"São resultados ótimos. E esses testes de desafio são uma maneira excelente de encurtar o processo de provar que uma vacina funciona", afirma Anita Zaidi, diretora de doenças diarreicas da fundação.

"Se tivéssemos feito isso em campo, precisaríamos acompanhar as crianças por três ou quatro anos."

Por que dizer sim?
Os chamados testes de desafio envolvem dar aos participantes uma vacina experimental e depois infectá-los deliberadamente com a doença para ver se estão protegidos.

Esses testes só têm permissão para ser feitos com doenças que podem ser curadas rápida e completamente, como cólera e malária, ou com aquelas, como a gripe sazonal, que normalmente não prejudicam adultos saudáveis.

Ainda assim, havia uma boa chance de os participantes de Oxford sofrerem com a febre tifoide por vários dias até que os antibióticos começassem a funcionar.

Então, o que motivou as dezenas de britânicos bem-educados a tomar um frasco cheio de germes que tornaram Typhoid Mary famosa? Em entrevistas, eles deram várias razões.

Alguns, como Duggan, ficaram curiosos. Outros queriam ajudar as pessoas pobres. E outros ainda estavam interessados principalmente no dinheiro.

Os participantes que seguiram todos os passos, o que incluía registrar suas temperaturas on-line, fazer visitas diárias à clínica e fornecer amostras de sangue e de fezes regularmente, receberam cerca de US$ 4.000 (cerca de R$ 12.600).
Todos disseram entender os riscos.

A febre tifoide conseguiu sua terrível reputação em uma era anterior aos antibióticos, mas hoje ela pode ser facilmente curada com antibióticos comuns, como ciprofloxacina ou azitromicina.

Todos os participantes precisavam ser adultos saudáveis, com idade entre 18 e 60 anos e passar por exames de ultrassom que comprovassem que suas vesículas biliares não tinham pedras. (A bactéria pode persistir por décadas agarrada aos cálculos biliares -- que é provavelmente a maneira pela qual Typhoid Mary, trabalhando como cozinheira em casas chiques e em uma maternidade, infectou tantas pessoas entre 1900 e 1915 sem nunca ficar doente.)

Os participantes tiveram experiências muito diferentes.

Duggan ficou três dias doente, com sintomas de gripe. "Gripe de verdade, daquelas que você não quer sair da cama", conta. Sua temperatura chegou a quase 39º Celsius, e ele teve dores nas articulações e muita dor de cabeça.

Assim que um exame de sangue provou que tinha a febre tifoide, ele recebeu os antibióticos; e não foi liberado do tratamento até que três exames de sangue e fezes mostraram que estava fora de perigo.

Depois, ficou sabendo que havia caído no grupo que recebeu o placebo do teste, ou seja, tinha tomado uma vacina contra meningite. (Conselhos de ética modernos não aprovam os placebos de açúcar inúteis.)

Nick J. Crang, 24, aluno de pós-graduação de Proteômica, também recebeu o placebo. Mas, de alguma maneira, não ficou doente, mesmo depois de participar de dois desafios de febre tifoide com um intervalo de um ano.

"Descobriram que tenho uma imunidade inata para febre tifoide", conta ele.

E ele se sente sobre-humano? "Não, sou o rato de laboratório que estraga os números."

Ele até deu amostras extras de sangue para os pesquisadores, que ficaram curiosos a respeito de seu sistema imunológico.
As doses de bactéria foram oferecidas por enfermeiras usando aventais de plástico, luvas e cobertura nas faces para evitar a contaminação. Os participantes também usaram aventais e óculos e tomaram uma bebida com bicarbonato antes para neutralizar o ácido do estômago.

Mas não havia recipientes fumegantes como os dos filmes de Vincent Price. "Foi tudo muito simples. Foi servido em um tubo típico de laboratório. Esperava que teria um gosto mais de tifoide. Não como fezes, quero dizer -- as coisas que fazem as fezes terem o cheiro característico são bactérias completamente diferentes", afirma Daina Sadurska, 26.
"Mas esperava alguma coisa. Várias culturas têm um odor típico. Era límpido, acho, e não tinha um gosto específico."

Sadurska nunca ficou doente e depois descobriu que havia tomado a vacina. Ela teve uma razão única para participar: sua bisavó e uma de suas tias morreram durante uma epidemia de febre tifoide na Letônia durante a Primeira Guerra Mundial.

"Quando contei para a minha mãe que ia participar, ela me lembrou desse episódio. Quando me inscrevi, pensei, 'Por que estou fazendo isso?' Mas sou bióloga. Todos os tipos de monstros são muito menos assustadores quando você sabe mais sobre eles", diz.

Os US$ 4.000 também foram "muito bem-vindos", segundo ela. Os alunos de Oxford recebem apenas US$ 17.600 (cerca de R$ 55.500) por ano para viver em uma cidade com o custo de vida quase igual ao de Londres.

Sadurska e Crang, seu namorado, usaram o dinheiro para visitar a Croácia, Israel e a família dela na Letônia. Os dois já se inscreveram para um segundo teste de vacina que vai pagar por sua cirurgia ocular a laser e por uma viagem para a Austrália.

Faye Francis, enfermeira psiquiátrica de 42 anos, diz que se sentiu feliz de fazer alguma coisa que pode ajudar milhões de pessoas que não têm acesso aos antibióticos.

"Mas não vou mentir, o dinheiro contou muito", confessa.

Ela usou a quantia para fazer, com o marido e os três filhos, uma viagem de férias para Cornualha e comprar algumas coisas para o carro e a casa.

Sua mãe não ficou muito feliz. "Ela disse, 'Isso é ridículo -- não pense no dinheiro, pense em sua saúde'. E as pessoas ficaram me contando as histórias de horror que viram na TV. Então nem falei mais sobre o assunto com meus pais depois disso", conta ela.

Ela ficou doente e se sentiu horrível por cerca de uma semana, com 38º de febre, dores de cabeça e náuseas.

"Mas fui trabalhar. Eu me senti culpada de não ir porque era uma doença que eu mesma me dei", diz ela.

Como seu trabalho é distribuir medicamentos em visitas domiciliares, seus pacientes não correram riscos, afirma. (Duggan, o estudante de medicina, também disse que participou em um período em que não precisava fazer rondas nos hospitais.)

"Eles não deixam a pessoa participar se tem filhos em idade pré-escolar ou menores. E você não pode mexer com alimentos, então meu marido cozinhou", conta Francis.

Durante a pior semana, ela se sentiu com pena de si mesma e jurou nunca mais fazer algo parecido. "Mas é como um parto, a gente fica com amnésia e faz de novo. Acabei de me inscrever para um novo teste."

Donald G. Mcneil Jr, OMS | UOL Notícias


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