Uma nova proposta de projeto
de lei que flexibiliza as regras para fiscalização e utilização de agrotóxicos
no País abriu uma crise dentro do governo, colocando o Ministério da Saúde, a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Ministério do Meio
Ambiente (MMA) e o Ibama em rota de colisão com o Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (Mapa), além da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA).
A movimentação se intensificou
devido à leitura do texto relatado pelo deputado Luiz Nishimori (PR/PR), em
audiência marcada para a próxima terça-feira, 8, na Comissão Especial da Câmara
que analisa o PL. De um lado, Ibama e Anvisa declaram que a proposta é
inconstitucional e cercada de falhas que prejudicariam a fiscalização,
ameaçando a vida das pessoas. Do outro, o Mapa e a FPA afirmam que o tema é
tratado com “preconceito e ideologia” e que precisa ser modernizado
O texto substitutivo, que foi
juntado ao projeto de Lei 6.299/2002, de autoria do ministro da Agricultura,
Blairo Maggi, propõe mudanças profundas no setor, a começar pelo próprio nome
com que esses produtos são chamados.
Pela proposta, o termo
“agrotóxico” deixaria de existir. Entraria em seu lugar a expressão “produto
fitossanitário”. A responsabilidade por conceder registros de novos agrotóxicos
também mudaria de mãos. Hoje Ibama, Ministério da Saúde e Ministério da
Agricultura tomam decisões de forma conjunta. Com a mudança, o Ministério da
Agricultura concentraria todo o poder decisório.
O Ibama e o Ministério da
Saúde teriam apenas a função de homologar pareceres técnicos, mas essas
avaliações não seriam elaboradas por esses órgãos públicos. Caberia às próprias
empresas interessadas em vender os agrotóxicos a missão de apresentar essas
avaliações.
O texto também acaba com os atuais
critérios de proibição de registro de agrotóxicos no País. Segundo o Ibama e a
Anvisa, a proposta deixa brechas para que sejam vendidos no mercado nacional
produtos já banidos em boa parte do mundo, causadores de distúrbios hormonais e
danos ao sistema reprodutivo.
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litros de agrotóxicos ilegais no oeste da Bahia
Inconstitucional. O Estado
obteve uma nota técnica do Ibama sobre o substitutivo ao projeto de lei. O
documento foi concluído na semana passada. O órgão se posiciona radicalmente
contra o PL, sob a justificativa de que “são propostas excessivas
simplificações ao registro de agrotóxicos, sob a justificativa de que o sistema
atual está ultrapassado e de que não estão sendo atendidas as necessidades do
setor agrícola”.
Na avaliação do Ibama,
trata-se de mudanças “inviáveis ou desprovidas de adequada fundamentação
técnica e, até mesmo, que contrariam determinação constitucional”.
A conclusão do órgão ligado ao
MMA é de que as propostas “reduzirão o controle desses produtos pelo poder
público, especialmente por parte dos órgãos federais responsáveis pelos setores
da saúde e do meio ambiente”.
“O registro dos agrotóxicos,
com participação efetiva dos setores de saúde e meio ambiente, é o procedimento
básico e inicial de controle a ser exercido pelo poder público e sua manutenção
e aperfeiçoamento se justificam na medida em que seja, primordialmente, um
procedimento que previna a ocorrência de efeitos danosos ao ser humano, aos
animais e ao meio ambiente”, informa a nota técnica. Procurado pela reportagem,
o Ibama não quis comentar a análise.
Retrocesso. Presidente da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Jarbas Barbosa afirma que a
proposta em tramitação do Congresso representaria um retrocesso para o País. “O
projeto muda para pior as regras de registro de agrotóxicos”, avalia.
As críticas também são feitas
entre especialistas em saúde pública. A pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz
de Pernambuco Aline Gurgel considera a mudança nas regras de registro de
agrotóxicos um atraso que pode colocar em risco tanto a saúde da população
quanto o meio ambiente. “A regra atual é moderna, equilibrada, pois dá um poder
equivalente ao Ministério da Agricultura, à Anvisa e ao Ibama. É inaceitável
que Anvisa e Ibama, que hoje têm poder de veto, passem a exercer apenas um mero
papel consultivo”, completa a pesquisadora.
As críticas de Aline à
proposta vão além da restrição do poder de veto da Anvisa e Ibama. A começar da
sugestão de tratar agrotóxicos por defensivos fitossanitários. “Isso provocaria
a ocultação do risco. O agrotóxico tem toxicidade. E isso precisa ficar claro
para população. O termo precisa ser mantido.”
A pesquisadora é contrária
também à regra que facilitaria o registro provisório de agrotóxicos. “Feitos
para algumas moléculas, esses registros baseiam-se em informações que constam
em processos de registro do produto em outros países, sem que haja a devida
análise dos órgãos ambientais e de saúde.”
Aline rebate ainda a
justificativa apresentada pelo projeto, de que regras atuais acabam levando a
um processo moroso de avaliação de aprovação de novos agrotóxicos para culturas
brasileiras. “A análise não pode ser simplista, movida por motivos econômicos.
Estamos falando de saúde, de preservação do meio ambiente.”
Ideologia e preconceito. O
Ministério da Agricultura reagiu duramente às críticas. Em resposta encaminhada
ao ‘Estado’, o Mapa afirmou que, dos órgãos envolvidos na regulação de
agrotóxicos no Brasil, é a Pasta, por meio da Secretaria de Defesa Agropecuária
(SDA), que de fato executa as fiscalizações federais de agrotóxicos. “São
feitas mais de 1.500 ações fiscais no Brasil por ano, com atingimento de mais
de 99,9% de conformidade nos produtos fiscalizados”, declarou. “Portanto,
fiscalização é uma atividade realizada eminentemente pelos órgãos de
agricultura no Brasil, considerando a área de agrotóxicos.”
Sobre o texto do projeto de
lei e o relatório final do deputado Luiz Nishimori, o Mapa afirmou que a
proposta “congrega uma série histórica de diversas demandas negligenciadas
pelos órgãos federais nos últimos 20 anos”. A Pasta admitiu que “alguns pontos
devem ser discutidos em função de seu contexto e origem”, mas sustenta que o
relatório representa “uma iniciativa do legislativo de ajustar o marco legal e
permitir a modernização da legislação nacional”.
A respeito do termo
“agrotóxico”, o ministério declarou que se trata de um “neologismo brasileiro,
único no planeta” e que este “reflete a intenção do legislador de comunicar o
risco para produtos que possuem, naturalmente, um perigo intrínseco”. Quanto à
acusação do Ibama e Anvisa de que estes perderiam funções de fiscalizar o
setor, o Mapa declarou que, “no que tange ao registro e às prioridades para
produtos que serão usados fundamentalmente para controle de pragas nas lavouras
brasileiras, é missão indissociável do órgão federal de agricultura”.
Questionado sobre o risco de
entrada de substâncias proibidas no País, o Mapa afirmou que o “alinhamento da
legislação é fundamental para trazer serenidade na regulação de agrotóxicos no
Brasil, diminuindo ruídos ideológicos e baseando a regulação unicamente em
ciência”.
“O Mapa repudia ideias de
exclusão dos entes de saúde e meio ambiente do meio regulatório, mas entende
que é necessário incrementar com recursos o corpo técnico, as ferramentas de
informática e os conceitos pétreos científicos para que mantenhamos a
excelência e o reconhecimento internacional de produção agropecuária”, conclui o
Ministério.
O relator do texto
substitutivo, deputado Luiz Nishimori, respondeu por meio da Frente Parlamentar
Agropecuária (FPA). Em nota, a frente esclareceu que, apesar do texto ser
apensado ao PL de autoria de Blairo Maggi, a proposta base foi criada a partir
do PL 3200/15, de autoria do deputado Covatti Filho (PP-RS).
Segundo a FPA, a atual
avaliação de risco do agrotóxicos é “restritiva porque não leva em consideração
que, sempre que usados em respeito às boas práticas agrícolas, os defensivos não
oferecem riscos à saúde do agricultor, dos animais, das plantas, dos
consumidores ou ao meio ambiente”.
A frente ruralista afirmou que
“todos os parâmetros internacionais de avaliação de riscos aceitáveis para a
saúde humana, animal e para o meio ambiente estão mantidos” e criticou a demora
na emissão de registros de produtos.
“Hoje, demora-se de 8 a 10
anos para aprovar o registro de um novo produto. Muitas vezes, quando o produto
é autorizado, já está defasado. Em países como EUA e Austrália, por exemplo, o
prazo médio de registro é de três anos. A demora no registro de novos
defensivos agrícolas no Brasil é um dos principais gargalos da legislação”,
declarou.
Ideia antiga. A proposta de
afrouxar as regras para agrotóxicos no País não é nova. No ano passado, o
governo preparou uma Medida Provisória que facilitava o registro de agrotóxicos
no País. Redigido pelo Ministério da Agricultura com a colaboração do setor
produtivo, o texto criava uma brecha para o uso de defensivos que atualmente
são classificados como cancerígenos, com risco de provocar má-formação nos
fetos ou capacidade de provocar mutações celulares. Pelas regras atuais,
qualquer produto que se encaixe nessas características é proibido de ser
lançado no Brasil. No texto proposto na MP, esses empecilhos cairiam por terra.
Bastaria que algumas condições fossem atendidas para reduzir os riscos desses
efeitos.
Risco. A proposta em
tramitação no Congresso para mudar as normas de registro de agrotóxicos
colocaria em risco a saúde dos trabalhadores do campo, reduziria a segurança
dos brasileiros em geral e, ainda, poderia provocar danos para a imagem de
produtos brasileiros no mercado externo, afirma o presidente da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Jarbas Barbosa. “Seria muito
prejudicial. Torço para não ser aprovada.”
Em entrevista ao Estado,
Barbosa afirma que seria um erro retirar a Anvisa e o Ibama da análise dos
pedidos de registro de agrotóxicos, como propõe o projeto. A atribuição ficaria
a cargo do Ministério da Agricultura. “Mas quem vai fazer a avaliação do
impacto à saúde ou ao meio ambiente? O Ministério da Agricultura não tem
experiência acumulada para fazer avaliação toxicológica. Seria um retrocesso
imenso.” Teoricamente, Ibama e Anvisa atuariam numa comissão criada para fazer
a avaliação, mas sem poder de veto. “O Brasil vai passar a dar registro só
levando em conta as necessidades da indústria agrícola?”, questiona.
Para o setor produtivo, o
sistema atual é muito burocrático e lento, o que acabaria reduzindo as chances
de entrada no mercado de novos produtos, mais baratos, eficientes e portanto
essenciais para tornar a produção brasileira mais competitiva no mercado
internacional
O presidente da Anvisa, no
entanto, tem uma avaliação diferente. Ele alerta que uma mudança de regras tem
impacto negativo também no mercado externo. “A ideia será a de que o País abriu
mão de uma regulação mais séria”, ponderou. O impacto no mercado interno também
seria significativo
André Borges e Lígia Formenti,
O Estado de S.Paulo