O ano de 2017 foi
especialmente relevante para o programa de leniência do Conselho de
Administrativo de Defesa Econômica (Cade), uma das ferramentas mais efetivas na
persecução de carteis no Brasil. De acordo com o Anuário do Cade de 20171, a autoridade antitruste brasileira celebrou
21 acordos de leniência (ALs) e três aditivos, com 12 pedidos de
leniência plus – um recorde que ressalta a efetividade do
programa.
Tanto o Programa de Leniência
quanto a celebração de Termos de Compromisso de Cessão são ferramentas
institucionais para a política nacional de combate a carteis. Considerando os
impactos difusos dessa modalidade de conduta anticompetitiva, bem como o
fundamento constitucional da Lei 12.529/2011 (isto é, reprimir infrações contra
a ordem econômica), pode-se concluir que o Cade promove Políticas Públicas,
logo, atividade essencialmente de ordem pública.
Dito isso, este artigo
apresenta um breve panorama sobre o pano de fundo da reparação civil por danos
concorrenciais no Brasil, tema ainda incipiente no ordenamento jurídico
antitruste brasileiro.
Tomando como ponto de partida
o ambiente em processo de globalização das transações comerciais, as decisões e
políticas promovidas pelo Cade não podem ser vistas como atos “ilhados”, cegos
aos possíveis impactos de suas decisões. Uma decisão pública, por essência,
leva à alteração do ambiente institucional anterior e impacta o contexto dos
custos de transação envolvidos; portanto, a responsabilidade não é simples.
Ao afastar a hipótese de uma
política fechada, o Cade tem promovido diálogos com agentes privados
possivelmente afetados por suas decisões – por exemplo, por meio de consultas
públicas. Um “tópico quente” que passou pelo Cade foi a minuta sobre acesso a
documentos oriundos da celebração de acordos de leniência2. Após rodadas de discussões entre autoridade e
sociedade civil, notadamente a partir de duas consultas públicas, a minuta
final foi publicada no DOU no dia 19/09/2018 na forma da Resolução nº 21, de 11
de setembro de 2018.
O tema é relevante por atingir
dois âmbitos distintos do enforcement do antitruste, quais
sejam, a persecução pública e o dito private enforcement.
Em que pese a distinção entre os objetivos de cada um dos campos, há uma intersecção
fática decorrente da influência de uma sobre a outra.
De um lado, o enforcement público
representa decisões tomadas pela autoridade antitruste na repressão de danos
concorrenciais (esfera difusa). De outro, o private enforcement parte
do direito de ressarcimento privado diante da comprovação de danos decorrentes
de atos anticompetitivos. Portanto, enquanto na primeira categoria a autoridade
pública assume as funções de investigador e julgador3, a segunda presume uma lide privada, isto é,
duas partes em litígio em face do Poder Judiciário a partir do ajuizamento de
uma Ação Civil de Reparação por Danos Concorrenciais (ARDC)4.
A intersecção mencionada há
pouco parte de uma potencialidade lógica: a existência de uma persecução
pública efetiva contra carteis levará, naturalmente, à
descoberta das condutas praticadas. De outro lado, a existência de um enforcement privado
igualmente efetivo pode levar, em tese, a uma redução de condutas
anticompetitivas.
Chegamos a uma tensão central
para a presente discussão que apresentamos na forma de dois cenários:
Cenário A. Regras que
favoreçam excessivamente o enforcement público podem
prejudicar o private enforcement
Cenário B. Regras que
favoreçam excessivamente o enforcement privado podem
prejudicar o enforcement público
Sobre o primeiro cenário (A),
toma-se como premissa o fato de que o desenho colaborativo da persecução
pública depende de garantias de sigilo para as investigações e de incentivos
para os colaboradores. Isso pode ser explicado pelo fato de que as informações
sigilosas decorrentes dos acordos podem ser a única fonte probatória para que
as partes lesadas busquem a reparação de danos. Assim, um regime em que o
acesso a informações seja rigorosamente restrito (ou seja, a opção pelo enforcement público
em detrimento do privado) pode inviabilizar o eventual ressarcimento por parte
das partes lesadas pela conduta. Isso levaria a um desincentivo ao ajuizamento
de ARDCs.
O segundo cenário (B) parte da
conclusão de que favorecer excessivamente o private enforcement pode
prejudicar o enforcementpúblico. Isso parte da hipótese de que o
fortalecimento do private enforcement em detrimento da
persecução pública prejudicaria os incentivos à participação em programas de
colaboração (Leniência e TCCs). A hipótese é fundamentada pelo fato de que a
certeza ex ante de que as informações e documentações
prestadas sobre a infração serão levadas ao público, reduzindo os incentivos
para a cooperação. A conclusão sobre o segundo cenário é a seguinte: favorecer
o enforcementprivado sem uma regulação clara sobre as
regras de acesso às informações, bem como sobre a limitação da responsabilidade
civil do beneficiário dos acordos, poderá prejudicar a persecução pública.
Isso levaria a um possível “nó
cego”, em que o desincentivo aos programas de colaboração (resultado do cenário
B) provavelmente reduziria a descoberta e investigação de cartéis, o que
impactaria, por decorrência, a possibilidade de ajuizamentos de ARDCs
(resultado do cenário A).
Ao invés de optar por um
modelo estrito em detrimento de outro, levando aos efeitos deletérios
derivados, a solução do problema talvez passe por um desenho que promova o
equilíbrio entre os modos de persecução de carteis. Em outras
palavras, compatibilizar os Programas de Leniência e os Termos de
Compromisso de Cessação (“TCC”) do Cade com a crescente tendência de
ajuizamento da ARDCs.
Estudos estrangeiros indicam
que a coexistência de enforcementsprivados e públicos igualmente
efetivos não levaria a um cenário de overdeterrence.5 Mais que isso: um private
enforcement efetivo seria capaz de garantir maior segurança aos
agentes econômicos na arena mercadológica, na medida que eventuais prejuízos
por carteis poderão ser compensados com a chancela do Poder Judiciário6.
À guisa de conclusão,
encontram-se alguns desafios para a autoridade antitruste no tema.
Primeiro, há uma necessidade de equalizar a tensão entre necessidade de
publicização das provas e a eficiência dos atos da administração pública. Em
seguida, tem-se a noção de que a publicização irrestrita seria desproporcional
e retiraria a efetividade dos programas de colaboração. E por fim, há a
conclusão de que uma restrição absoluta das informações oriundas dos programas
de Leniência e TCCs impediria às vítimas do dano o devido acesso a elementos
necessários para embasar o pedido de reparação.
É nesse contexto que a Resolução
nº 21 do Cade se coloca como um importante facilitador institucional,
especialmente como incentivo à propositura de ARDCs.
Além disso, há algumas
questões de ordem legislativa. Nessa seara, ressaltamos o Projeto de Lei do
Senado (PLS) nº 283/2016, cujos principais pilares visam i) incentivar a
propositura de ARDCs; ii) garantir maior previsibilidade e segurança aos
lesados por danos concorrenciais; iii) assegurar acesso aos documentos
necessários para a propositura de ARDCs e maior prazo; iv) limitar a
responsabilidade civil do signatário de acordo de leniência, retirando a
responsabilidade solidária dos beneficiários de leniência e compromissários de
TCC pelos danos causados pelo cartel; e vi) ratificar o dever de reparação
em dobro sobre danos concorrenciais (double damages).
Especialmente no tocante à
previsibilidade e segurança jurídica, ressaltam-se as propostas de
alteração legislativa sobre o termo inicial do prazo prescricional. A proposta
do PLS nº 283/2016, após a Emenda nº3/CCJ, é de aumentar o
prazo prescricional de três para cinco anos a contar da decisão plenária
do Cade7.
Atualmente, o projeto encontra-se
na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal desde 19/06/2018, quando a
matéria foi retirada de pauta para reexame. Considerando os impactos
estruturais e institucionais propostos pela legislação proposta, ressalta-se a
importância da participação da sociedade civil no debate, bem como as medidas
de advocacy pelo Cade e Seprac perante aos Tribunais com o
horizonte da consolidação de uma jurisprudência administrativa e judicial sobre
a reparação civil de danos concorrenciais.
————————————
1 Anuário do Cade de 2017, p. 10.
Disponível em: <http://www.cade.gov.br/noticias/Anurio2017.pdf>. Acesso:
24.09.2018.
2 Nessa seara, a então Chefia de Gabinete
da Superintendência-Geral editou, em 2016, um robusto estudo sobre as melhores
práticas internacionais sobre reparação de danos concorrenciais (Nota Técnica
nº 24/2016/SG/SG/Cade).
3 Ressaltando as competências distintas dos
órgãos internos, nos termos da Lei.
4 Nesse ponto, o polo ativo da ARDC poderá
ser tanto a parte lesada (como lide essencialmente privada, quando demostrar os
danos efetivamente sofridos pela conduta) quanto os legitimados para a
propositura de Ação Civil Pública (o Ministério Público, as unidades
federativas e associações constituídas para fim específico relacionado ao dano
difuso praticado, desde que existente há mais de um ano).
5 Cf. DAVIS, Joshua P.; LANDE, Robert H. Restoring
the Legitimacy of Private Antitrust Enforcement. University of Baltimore
School of Law Legal Studies Research Paper, n. 2018-02, -3 de maio de 2017, p.
13-14. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=2962579>.
Acesso: 24/09/2018.
6 Cf. PEIXOTO, Bruno Lanna; DA SILVA,
Ludmilla Martins. Alterações legislativas necessárias e o futuro das ações
reparatórias. In: DRAGO, Bruno de Luca; PEIXOTO, Bruno Lanna (orgs.). A
livre concorrência e os Tribunais brasileiros: análise crítica dos julgados
no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. São Paulo: Singular,
2018, p. 118.
7 Sobre as discussões referentes à
definição do termo inicial e contagem do prazo prescricional, cf. VILANOVA,
Polyanna. Ciência inequívoca da decisão como termo inicial para a contagem da
prescrição nas indenizações oriundas de cartéis. In: RODAS, João
Grandino. Direito concorrencial: avanços e perspectivas – Livro 1.
Curitiba. Editora Prismas, 2018 e MARTINS, Frederico Bastos Pinheiro. Obstáculos
às ações privadas de reparação de danos decorrentes de cartéis. Dissertação
(Mestrado em Direito e Desenvolvimento) – Escola de Direito de São Paulo da
Fundação Getúlio Vargas, FGV, São Paulo, 2017.
POLYANNA VILANOVA – Conselheira
do CADE
FERNANDO AMORIM – Assessor da Conselheira Polyanna Vilanova
FERNANDO AMORIM – Assessor da Conselheira Polyanna Vilanova
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