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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Reparação civil por danos concorrenciais


O ano de 2017 foi especialmente relevante para o programa de leniência do Conselho de Administrativo de Defesa Econômica (Cade), uma das ferramentas mais efetivas na persecução de carteis no Brasil. De acordo com o Anuário do Cade de 20171, a autoridade antitruste brasileira celebrou 21 acordos de leniência (ALs) e três aditivos, com 12 pedidos de leniência plus – um recorde que ressalta a efetividade do programa.

Tanto o Programa de Leniência quanto a celebração de Termos de Compromisso de Cessão são ferramentas institucionais para a política nacional de combate a carteis. Considerando os impactos difusos dessa modalidade de conduta anticompetitiva, bem como o fundamento constitucional da Lei 12.529/2011 (isto é, reprimir infrações contra a ordem econômica), pode-se concluir que o Cade promove Políticas Públicas, logo, atividade essencialmente de ordem pública.

Dito isso, este artigo apresenta um breve panorama sobre o pano de fundo da reparação civil por danos concorrenciais no Brasil, tema ainda incipiente no ordenamento jurídico antitruste brasileiro.

Tomando como ponto de partida o ambiente em processo de globalização das transações comerciais, as decisões e políticas promovidas pelo Cade não podem ser vistas como atos “ilhados”, cegos aos possíveis impactos de suas decisões. Uma decisão pública, por essência, leva à alteração do ambiente institucional anterior e impacta o contexto dos custos de transação envolvidos; portanto, a responsabilidade não é simples.

Ao afastar a hipótese de uma política fechada, o Cade tem promovido diálogos com agentes privados possivelmente afetados por suas decisões – por exemplo, por meio de consultas públicas. Um “tópico quente” que passou pelo Cade foi a minuta sobre acesso a documentos oriundos da celebração de acordos de leniência2. Após rodadas de discussões entre autoridade e sociedade civil, notadamente a partir de duas consultas públicas, a minuta final foi publicada no DOU no dia 19/09/2018 na forma da Resolução nº 21, de 11 de setembro de 2018.

O tema é relevante por atingir dois âmbitos distintos do enforcement do antitruste, quais sejam, a persecução pública e o dito private enforcement. Em que pese a distinção entre os objetivos de cada um dos campos, há uma intersecção fática decorrente da influência de uma sobre a outra.

De um lado, o enforcement público representa decisões tomadas pela autoridade antitruste na repressão de danos concorrenciais (esfera difusa). De outro, o private enforcement parte do direito de ressarcimento privado diante da comprovação de danos decorrentes de atos anticompetitivos. Portanto, enquanto na primeira categoria a autoridade pública assume as funções de investigador e julgador3, a segunda presume uma lide privada, isto é, duas partes em litígio em face do Poder Judiciário a partir do ajuizamento de uma Ação Civil de Reparação por Danos Concorrenciais (ARDC)4.
A intersecção mencionada há pouco parte de uma potencialidade lógica: a existência de uma persecução pública efetiva contra carteis levará, naturalmente, à descoberta das condutas praticadas. De outro lado, a existência de um enforcement privado igualmente efetivo pode levar, em tese, a uma redução de condutas anticompetitivas.

Chegamos a uma tensão central para a presente discussão que apresentamos na forma de dois cenários:
Cenário A. Regras que favoreçam excessivamente o enforcement público podem prejudicar o private enforcement
Cenário B. Regras que favoreçam excessivamente o enforcement privado podem prejudicar o enforcement público
Sobre o primeiro cenário (A), toma-se como premissa o fato de que o desenho colaborativo da persecução pública depende de garantias de sigilo para as investigações e de incentivos para os colaboradores. Isso pode ser explicado pelo fato de que as informações sigilosas decorrentes dos acordos podem ser a única fonte probatória para que as partes lesadas busquem a reparação de danos. Assim, um regime em que o acesso a informações seja rigorosamente restrito (ou seja, a opção pelo enforcement público em detrimento do privado) pode inviabilizar o eventual ressarcimento por parte das partes lesadas pela conduta. Isso levaria a um desincentivo ao ajuizamento de ARDCs.

O segundo cenário (B) parte da conclusão de que favorecer excessivamente o private enforcement pode prejudicar o enforcementpúblico. Isso parte da hipótese de que o fortalecimento do private enforcement em detrimento da persecução pública prejudicaria os incentivos à participação em programas de colaboração (Leniência e TCCs). A hipótese é fundamentada pelo fato de que a certeza ex ante de que as informações e documentações prestadas sobre a infração serão levadas ao público, reduzindo os incentivos para a cooperação. A conclusão sobre o segundo cenário é a seguinte: favorecer o enforcementprivado sem uma regulação clara sobre as regras de acesso às informações, bem como sobre a limitação da responsabilidade civil do beneficiário dos acordos, poderá prejudicar a persecução pública.

Isso levaria a um possível “nó cego”, em que o desincentivo aos programas de colaboração (resultado do cenário B) provavelmente reduziria a descoberta e investigação de cartéis, o que impactaria, por decorrência, a possibilidade de ajuizamentos de ARDCs (resultado do cenário A).
Ao invés de optar por um modelo estrito em detrimento de outro, levando aos efeitos deletérios derivados, a solução do problema talvez passe por um desenho que promova o equilíbrio entre os modos de persecução de carteis. Em outras palavras, compatibilizar os Programas de Leniência e os Termos de Compromisso de Cessação (“TCC”) do Cade com a crescente tendência de ajuizamento da ARDCs.

Estudos estrangeiros indicam que a coexistência de enforcementsprivados e públicos igualmente efetivos não levaria a um cenário de overdeterrence.5 Mais que isso: um private enforcement efetivo seria capaz de garantir maior segurança aos agentes econômicos na arena mercadológica, na medida que eventuais prejuízos por carteis poderão ser compensados com a chancela do Poder Judiciário6.

À guisa de conclusão, encontram-se alguns desafios para a autoridade antitruste no tema. Primeiro, há uma necessidade de equalizar a tensão entre necessidade de publicização das provas e a eficiência dos atos da administração pública. Em seguida, tem-se a noção de que a publicização irrestrita seria desproporcional e retiraria a efetividade dos programas de colaboração. E por fim, há a conclusão de que uma restrição absoluta das informações oriundas dos programas de Leniência e TCCs impediria às vítimas do dano o devido acesso a elementos necessários para embasar o pedido de reparação.

É nesse contexto que a Resolução nº 21 do Cade se coloca como um importante facilitador institucional, especialmente como incentivo à propositura de ARDCs.

Além disso, há algumas questões de ordem legislativa. Nessa seara, ressaltamos o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 283/2016, cujos principais pilares visam i) incentivar a propositura de ARDCs; ii) garantir maior previsibilidade e segurança aos lesados por danos concorrenciais; iii) assegurar acesso aos documentos necessários para a propositura de ARDCs e maior prazo; iv) limitar a responsabilidade civil do signatário de acordo de leniência, retirando a responsabilidade solidária dos beneficiários de leniência e compromissários de TCC pelos danos causados pelo cartel; e vi) ratificar o dever de reparação em dobro sobre danos concorrenciais (double damages).

Especialmente no tocante à previsibilidade e segurança jurídica, ressaltam-se as propostas de alteração legislativa sobre o termo inicial do prazo prescricional. A proposta do PLS nº 283/2016, após a Emenda nº3/CCJ, é de aumentar o prazo prescricional de três para cinco anos a contar da decisão plenária do Cade7.

Atualmente, o projeto encontra-se na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal desde 19/06/2018, quando a matéria foi retirada de pauta para reexame. Considerando os impactos estruturais e institucionais propostos pela legislação proposta, ressalta-se a importância da participação da sociedade civil no debate, bem como as medidas de advocacy pelo Cade e Seprac perante aos Tribunais com o horizonte da consolidação de uma jurisprudência administrativa e judicial sobre a reparação civil de danos concorrenciais.
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1 Anuário do Cade de 2017, p. 10. Disponível em: <http://www.cade.gov.br/noticias/Anurio2017.pdf>. Acesso: 24.09.2018.
2 Nessa seara, a então Chefia de Gabinete da Superintendência-Geral editou, em 2016, um robusto estudo sobre as melhores práticas internacionais sobre reparação de danos concorrenciais (Nota Técnica nº 24/2016/SG/SG/Cade).
3 Ressaltando as competências distintas dos órgãos internos, nos termos da Lei.
4 Nesse ponto, o polo ativo da ARDC poderá ser tanto a parte lesada (como lide essencialmente privada, quando demostrar os danos efetivamente sofridos pela conduta) quanto os legitimados para a propositura de Ação Civil Pública (o Ministério Público, as unidades federativas e associações constituídas para fim específico relacionado ao dano difuso praticado, desde que existente há mais de um ano).
5 Cf. DAVIS, Joshua P.; LANDE, Robert H. Restoring the Legitimacy of Private Antitrust Enforcement. University of Baltimore School of Law Legal Studies Research Paper, n. 2018-02, -3 de maio de 2017, p. 13-14. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=2962579>. Acesso: 24/09/2018.
6 Cf. PEIXOTO, Bruno Lanna; DA SILVA, Ludmilla Martins. Alterações legislativas necessárias e o futuro das ações reparatórias. In: DRAGO, Bruno de Luca; PEIXOTO, Bruno Lanna (orgs.). A livre concorrência e os Tribunais brasileiros: análise crítica dos julgados no Poder Judiciário envolvendo matéria concorrencial. São Paulo: Singular, 2018, p. 118.
7 Sobre as discussões referentes à definição do termo inicial e contagem do prazo prescricional, cf. VILANOVA, Polyanna. Ciência inequívoca da decisão como termo inicial para a contagem da prescrição nas indenizações oriundas de cartéis. In: RODAS, João Grandino. Direito concorrencial: avanços e perspectivas – Livro 1. Curitiba. Editora Prismas, 2018 e MARTINS, Frederico Bastos Pinheiro. Obstáculos às ações privadas de reparação de danos decorrentes de cartéis. Dissertação (Mestrado em Direito e Desenvolvimento) – Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, FGV, São Paulo, 2017.

POLYANNA VILANOVA – Conselheira do CADE
FERNANDO AMORIM – Assessor da Conselheira Polyanna Vilanova
Cade sede JOTA Imagens


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