A Lei 13.303/2016 estabeleceu o estatuto jurídico
das empresas estatais e suas subsidiárias, em cumprimento ao que determina o
artigo 173, §1º da Constituição, prevendo, entre tantas regras, aquelas
atinentes à escolha dos integrantes dos seus Conselhos de Administração,
Diretorias (artigo 16 e 17) Conselhos Fiscais (artigo 29, §1º) e Comitês de
Auditoria Estatutários (artigo 25). Os novos requisitos agregam-se àqueles
previstos na Lei 6.404/1976, prescrevendo imposições típicas do regime jurídico
de direito público às empresas estatais e suas subsidiárias.
A nova legislação abrange empresas públicas,
sociedades de economia mista e subsidiárias, empresas controladas pelas
empresas estatais e consórcios de empresas em que as estatais atuem na condição
de operadora, ressalvadas as empresas que tenham faturado, no exercício social
anterior, receita bruta operacional inferior a R$ 90 milhões (artigo 1º, § 1º).
Também foram excluídas da incidência uniforme e
integral do regime jurídico da Lei 13.303/2016 as sociedades empresariais em
que as empresas estatais não detenham o controle acionário (empresas
participadas), impondo-lhes, contudo, o legislador, práticas de governança e
controle proporcionais à relevância, à materialidade e aos riscos do negócio,
observado o elenco de providências do parágrafo 7º do artigo 1º da referida
lei.
A imediata aplicação dos requisitos previstos da
nova legislação suscitou polêmicas, fundamentalmente pelo que dispõe o artigo
91 da Lei 13.303/16 (lei das estatais), que previu um período de adaptação de
24 meses para que as estatais pudessem se preparar internamente para a
aplicação da nova norma.
Sobre o prazo de adaptação, Joel Menezes Neibhur (Regulamento de Licitações e Contratos das Estatais)
esclareceu que: “a Lei 13.303/2016 é vigente desde sua publicação (artigo 97),
porém as estatais gozam do prazo de 24 (vinte e quatro) meses para se adaptarem
e, por conseguinte, para passarem a aplicar suas disposições (artigo 91). Esse
prazo de 24 (vinte e quatro) meses deve ser visto como prazo máximo. Isso
significa que as estatais podem se adaptar desde logo, como lhes for
conveniente, e, uma vez adaptadas, submeterem-se de imediato à Lei n. 13.303/2016.
Como percebido por Luciano Ferraz, “de acordo com a realidade de cada empresa,
poder-se-ia cogitar do encurtamento do período de transição prescrito pelo
legislador para fins de aplicação imediata das regras da vigente Lei nº
13.303/16.” (em Lei das Estatais e seu período de transição: estudo de caso em MG).
Em suma — e restringindo o foco deste ensaio aos
requisitos de indicação dos dirigentes, conselheiros e membros dos comitês das
empresas estatais — o panorama geral que se vislumbrava (pelo menos até a nova
regulamentação) era basicamente o seguinte:
· O
regime jurídico previsto para as empresas estatais e congêneres (de grande
porte) é mais fortemente “publicizado” do que o regime das empresas em que há
apenas participação acionária da empresa estatal, sem controle (empresas
participadas);
· A
interpretação do prazo previsto no artigo 91 sugeria que as empresas estatais
possuíam o limite temporal de 24 meses para adequação às novas regras, mediante
os procedimentos necessários à revisão de suas normas internas sobre
organização societária, prevalecendo o regime anterior (regras antigas), até
que tais movimentos se concluíssem ou até que se verificasse o referido lapso
temporal.
O primeiro teste prático de aplicação das novas
regras de governança da lei das estatais aconteceu na Comissão de Valores
Mobiliários. Por meio do Relatório 141/2016/CVM/SEP/GEA-3, a Superintendência
de Relações com Empresas (SEP) sugeriu ao Colegiado da autarquia que declarasse
a ilegalidade de dada indicação de integrante para o Conselho de Administração
da Light (empresa participada pela Cemig).
A Cemig detém participação direta de 26,06% do
capital da Ligth, integrando o bloco de controle com a RME (Rio Minas Energia e
Participações S.A.) (13,03%) e a Luce Empreendimentos e Participações S.A
(13,03%). Os fundamentos adotados pela CVM para recusar a legitimidade da
indicação foram:
a) Independente de a Light estar ou não submetida
ao regime da Lei das Estatais, a CEMIG, em sua atuação na empresa investida
(participada), deve observar as regras de governança e demais normas aplicáveis
por ser uma sociedade de economia mista;
b) Se, em função da vedação prevista no artigo 17,
§ 2º, II, da Lei das Estatais, o indicado não poderia figurar como conselheiro
na Cemig, lógica e sistematicamente não seria possível admitir que a Cemig,
componente do grupo de controle da Light, indicasse e votasse nele para compor
o conselho desta Companhia.
c) Aplica-se a lei das estatais às indicações da
Cemig na Ligth desde a data de sua vigência, não se devendo cogitar de qualquer
prazo de adaptação, não obstante a redação do artigo 91;
A decisão da CVM, portanto, não só afasta o prazo
de adaptação constante do caput do artigo 91 da lei das estatais,
como atribui interpretação extensiva aos requisitos de indicação de membros do
Conselho de Administração previstos no artigo 17, terminando por
imprimir regime jurídico mais fortemente público, próprio das empresas
estatais e subsidiárias, às empresas participadas pelas estatais, como é o caso
da Ligth.
Acontece que na mesma data da decisão colegiada da
CVM (27/12/2016) o Poder Executivo Federal editou o Decreto 8.945/16 (vigente
desde então) com o objetivo de regulamentar a lei das estatais, manifestando
interpretação diversa do posicionamento assumido pela autarquia no caso
anunciado. A discussão é relevante.
Com efeito, os artigos 28 a 41 do decreto
minudenciam requisitos legais mais restritivos para a indicação de membros do
Conselho de Administração, diretoria, conselho fiscal e comitê estatutário de
auditoria das empresas estatais com faturamento superior a R$ 90 milhões no
exercício anterior, enquanto o artigo 58 prescreve requisitos menos
rígidos para as indicações da União ou de suas empresas estatais nas
participações minoritárias em empresas privadas (empresas participadas). Para estas
o regime jurídico atribuído pelo decreto é semelhante ao das empresas estatais
de menor porte, para as quais o próprio legislador prescreveu regime jurídico
menos intenso nas respectivas indicações.
Portanto, se ao tempo da edição da Lei 13.303/2016
havia dúvida quanto ao alcance da exigência dos requisitos de ingresso na
administração das empresas participadas — o que levou a CVM a adotar a
interpretação extensiva citada — após a edição do Decreto 8.945/16, a
interpretação respectiva está uniformizada pelo menos no âmbito do Poder
Executivo Federal – e independente de discussões em torno do prazo de adaptação
do artigo 91 da lei (assunto para outro artigo).
Dessa forma, caberá à CVM — a despeito da
competência que lhe é garantida por lei — compatibilizar seu entendimento com
as disposições regulamentares do Decreto 8.945/2016 (artigo 84, IV, CF/88),
porquanto, nesse particular, o regulamento “cerceia a liberdade de
comportamentos dos órgãos e agentes administrativos, para além dos cerceios da
lei, impondo, destarte, padrões de conduta que correspondem aos critérios
administrativos a serem obrigatoriamente observados na aplicação da lei aos
casos particulares. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito
Administrativo, 32. ed., São Paulo: Malheiros, 2014. p. 360).
Por Luciano Ferraz