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sábado, 4 de fevereiro de 2017

CVM fica em xeque com a regulamentação da Lei das Estatais

A Lei 13.303/2016 estabeleceu o estatuto jurídico das empresas estatais e suas subsidiárias, em cumprimento ao que determina o artigo 173, §1º da Constituição, prevendo, entre tantas regras, aquelas atinentes à escolha dos integrantes dos seus Conselhos de Administração, Diretorias (artigo 16 e 17) Conselhos Fiscais (artigo 29, §1º) e Comitês de Auditoria Estatutários (artigo 25). Os novos requisitos agregam-se àqueles previstos na Lei 6.404/1976, prescrevendo imposições típicas do regime jurídico de direito público às empresas estatais e suas subsidiárias.

A nova legislação abrange empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias, empresas controladas pelas empresas estatais e consórcios de empresas em que as estatais atuem na condição de operadora, ressalvadas as empresas que tenham faturado, no exercício social anterior, receita bruta operacional inferior a R$ 90 milhões (artigo 1º, § 1º).

Também foram excluídas da incidência uniforme e integral do regime jurídico da Lei 13.303/2016 as sociedades empresariais em que as empresas estatais não detenham o controle acionário (empresas participadas), impondo-lhes, contudo, o legislador, práticas de governança e controle proporcionais à relevância, à materialidade e aos riscos do negócio, observado o elenco de providências do parágrafo 7º do artigo 1º da referida lei.
A imediata aplicação dos requisitos previstos da nova legislação suscitou polêmicas, fundamentalmente pelo que dispõe o artigo 91 da Lei 13.303/16 (lei das estatais), que previu um período de adaptação de 24 meses para que as estatais pudessem se preparar internamente para a aplicação da nova norma.

Sobre o prazo de adaptação, Joel Menezes Neibhur (Regulamento de Licitações e Contratos das Estatais) esclareceu que: “a Lei 13.303/2016 é vigente desde sua publicação (artigo 97), porém as estatais gozam do prazo de 24 (vinte e quatro) meses para se adaptarem e, por conseguinte, para passarem a aplicar suas disposições (artigo 91). Esse prazo de 24 (vinte e quatro) meses deve ser visto como prazo máximo. Isso significa que as estatais podem se adaptar desde logo, como lhes for conveniente, e, uma vez adaptadas, submeterem-se de imediato à Lei n. 13.303/2016. Como percebido por Luciano Ferraz, “de acordo com a realidade de cada empresa, poder-se-ia cogitar do encurtamento do período de transição prescrito pelo legislador para fins de aplicação imediata das regras da vigente Lei nº 13.303/16.” (em Lei das Estatais e seu período de transição: estudo de caso em MG).

Em suma — e restringindo o foco deste ensaio aos requisitos de indicação dos dirigentes, conselheiros e membros dos comitês das empresas estatais — o panorama geral que se vislumbrava (pelo menos até a nova regulamentação) era basicamente o seguinte:
·                     O regime jurídico previsto para as empresas estatais e congêneres (de grande porte) é mais fortemente “publicizado” do que o regime das empresas em que há apenas participação acionária da empresa estatal, sem controle (empresas participadas);

·                     A interpretação do prazo previsto no artigo 91 sugeria que as empresas estatais possuíam o limite temporal de 24 meses para adequação às novas regras, mediante os procedimentos necessários à revisão de suas normas internas sobre organização societária, prevalecendo o regime anterior (regras antigas), até que tais movimentos se concluíssem ou até que se verificasse o referido lapso temporal.

O primeiro teste prático de aplicação das novas regras de governança da lei das estatais aconteceu na Comissão de Valores Mobiliários. Por meio do Relatório 141/2016/CVM/SEP/GEA-3, a Superintendência de Relações com Empresas (SEP) sugeriu ao Colegiado da autarquia que declarasse a ilegalidade de dada indicação de integrante para o Conselho de Administração da Light (empresa participada pela Cemig).
A Cemig detém participação direta de 26,06% do capital da Ligth, integrando o bloco de controle com a RME (Rio Minas Energia e Participações S.A.) (13,03%) e a Luce Empreendimentos e Participações S.A (13,03%). Os fundamentos adotados pela CVM para recusar a legitimidade da indicação foram:

a) Independente de a Light estar ou não submetida ao regime da Lei das Estatais, a CEMIG, em sua atuação na empresa investida (participada), deve observar as regras de governança e demais normas aplicáveis por ser uma sociedade de economia mista;

b) Se, em função da vedação prevista no artigo 17, § 2º, II, da Lei das Estatais, o indicado não poderia figurar como conselheiro na Cemig, lógica e sistematicamente não seria possível admitir que a Cemig, componente do grupo de controle da Light, indicasse e votasse nele para compor o conselho desta Companhia.

c) Aplica-se a lei das estatais às indicações da Cemig na Ligth desde a data de sua vigência, não se devendo cogitar de qualquer prazo de adaptação, não obstante a redação do artigo 91;

A decisão da CVM, portanto, não só afasta o prazo de adaptação constante do caput do artigo 91 da lei das estatais, como atribui interpretação extensiva aos requisitos de indicação de membros do Conselho de Administração previstos no artigo 17, terminando por imprimir regime jurídico mais fortemente público, próprio das empresas estatais e subsidiárias, às empresas participadas pelas estatais, como é o caso da Ligth.

Acontece que na mesma data da decisão colegiada da CVM (27/12/2016) o Poder Executivo Federal editou o Decreto 8.945/16 (vigente desde então) com o objetivo de regulamentar a lei das estatais, manifestando interpretação diversa do posicionamento assumido pela autarquia no caso anunciado. A discussão é relevante.

Com efeito, os artigos 28 a 41 do decreto minudenciam requisitos legais mais restritivos para a indicação de membros do Conselho de Administração, diretoria, conselho fiscal e comitê estatutário de auditoria das empresas estatais com faturamento superior a R$ 90 milhões no exercício anterior, enquanto o artigo 58 prescreve requisitos menos rígidos para as indicações da União ou de suas empresas estatais nas participações minoritárias em empresas privadas (empresas participadas). Para estas o regime jurídico atribuído pelo decreto é semelhante ao das empresas estatais de menor porte, para as quais o próprio legislador prescreveu regime jurídico menos intenso nas respectivas indicações.

Portanto, se ao tempo da edição da Lei 13.303/2016 havia dúvida quanto ao alcance da exigência dos requisitos de ingresso na administração das empresas participadas — o que levou a CVM a adotar a interpretação extensiva citada — após a edição do Decreto 8.945/16, a interpretação respectiva está uniformizada pelo menos no âmbito do Poder Executivo Federal – e independente de discussões em torno do prazo de adaptação do artigo 91 da lei (assunto para outro artigo).

Dessa forma, caberá à CVM — a despeito da competência que lhe é garantida por lei — compatibilizar seu entendimento com as disposições regulamentares do Decreto 8.945/2016 (artigo 84, IV, CF/88), porquanto, nesse particular, o regulamento “cerceia a liberdade de comportamentos dos órgãos e agentes administrativos, para além dos cerceios da lei, impondo, destarte, padrões de conduta que correspondem aos critérios administrativos a serem obrigatoriamente observados na aplicação da lei aos casos particulares. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 32. ed., São Paulo: Malheiros, 2014. p. 360).

Por Luciano Ferraz


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