Criança precisou de doador
estrangeiro por ter tipo raro; Brasil exportou material pela 1ª vez
Operação internacional. Material teve de passar por São
Paulo, Panamá, Bogotá e Medellín, superando 4 mil quilômetros
BOGOTÁ - O sangue de tipo
raríssimo de um jovem cearense salvou a vida de um bebê de 15 meses na Colômbia
nesta semana. Desde a criação do Cadastro Nacional de Sangue Raro, essa foi a
primeira vez que o País exportou material para outra nação, segundo o Ministério
da Saúde brasileiro.
A transfusão foi feita na
quarta-feira, 12, em Medellín. As autoridades locais não haviam conseguido
encontrar um colombiano com o mesmo tipo de sangue da criança, conhecido como
fenótipo Bombaim e fizeram um alerta à Organização Pan-Americana de Saúde
(Opas).
Essa história começou na
terça-feira da semana passada, quando a menina chegou ao hospital com vômitos e
falta de ar. A equipe médica descobriu que ela tinha baixo peso, anemia e
hemorragia no trato digestivo superior. A transfusão era urgente.
Os testes iniciais concluíram
que o tipo de sangue necessário era O negativo, mas nenhuma amostra era
compatível. Os exames especializados concluíram que a criança não tinha sangue
A ou B, ou AB, mas o fenótipo Bombaim. No Brasil, só há 11 famílias com esse
tipo de sangue.
O corpo da menina não
reconhecia nenhum dos tipos de sangue mais tradicionais e transfusão com o tipo
errado poderia causar danos nos rins e até mesmo a morte, explica María Isabel
Bermúdez, coordenadora da Rede Nacional de Bancos de Sangue da Colômbia.
Mas, diz ela, o fenótipo
Bombaim não foi a causa da doença. “As pessoas com este tipo de sangue são
geralmente saudáveis e, portanto, não necessariamente são identificadas.” O
governo colombiano não informou quem era a família ou deu detalhes sobre o
caso, como prevê a legislação local. O Estado apurou que a mãe da menina é
pobre e bastante jovem.
Após o alerta, a rede de
bancos de sangue no Brasil foi a única a identificar doador. Era um morador de
Fortaleza, de 23 anos, que não teve o nome divulgado. No último sábado, ele
doou 370 mililitros de seu sangue - quase o equivalente a uma lata de
refrigerante.
Isso só foi possível pelo
método refinado de análise de sangue do centro hematológico de onde veio a
doação, que pesquisa anticorpos irregulares. “Há quase quatro anos, o Hemoce
(Centro de Hematologia e Hemoterapia do Ceará) adotou novo método na busca de
doadores raros que permite detectar diferentes tipos sanguíneos, até
raríssimos”, explica Denise Brunetta, coordenadora do laboratório de
Imuno-hematologia do Hemoce.
Percurso longo. Depois do
desafio de encontrar o doador, as autoridades ainda batalharam para obter
licenças de autoridades competentes - como o Ministério da Saúde e a Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) - para exportar o sangue e garantir
que chegasse em bom estado ao destino.
“Saí para trabalhar na
segunda-feira achando que seria um dia normal e no entanto acabei o dia
embarcando com uma maleta de sangue para a Colômbia”, conta Natalícia Azevedo
Silva, enfermeira do Hemoce, que protegeu o saco de sangue durante as mais de
20 horas de voo - contando o tempo de espera em aeroportos.
Para transportá-lo, foram
seguidas as recomendações de transporte das legislações brasileiras e
internacionais, explica Natalícia, que há 18 anos trabalha com o Hemoce.
“Colocamos a bolsa em
recipiente rígido, envolta em material absorvente, com substância para
refrigerar e controle de temperatura. A caixa foi lacrada e identificada como
material biológico de risco mínimo. Não se pode passar a caixa no raio X nem
transportar no compartimento de mala de bordo, pelo risco de danificar o
conteúdo da bolsa”, descreve ela.
O trajeto do sangue não foi
fácil: saiu de Fortaleza, passou por São Paulo, Panamá, Bogotá e Medellín,
superando 4 mil quilômetros. Confirmada a compatibilidade, o material biológico
foi fragmentado: 80 centímetros cúbicos foram destinados para transfusão do
bebê, e o restante foi conservado caso haja nova necessidade.
“Esta história, sem
precedentes para os dois países, confirma que a rede de colaboração que foi
criada pelas autoridades de saúde na região está funcionando de maneira
permanente, eficaz e solidária”, disse ao Estado o ministro da Saúde da
Colômbia, Alejandro Gaviria. “É emocionante saber que os brasileiros tomaram
como sua própria causa a vida da menina de Medellín”, acrescentou o
ministro.
Histórico. A
Coordenação-Geral de Sangue Hemoderivado (CGSH) oferece consulta ao Cadastro
Nacional de Sangue Raro. Essa atividade é feita pelo Hemocentro da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), que centraliza as informações dos doadores de
sangue considerados raros de todo o País.
Entre 2015 e este mês, a CGSH
recebeu 25 solicitações de consulta ao cadastro. Em 2017, até agora, foram nove
pedidos, com 100% de atendimento.
Em apenas 0,1% da população
Descrito pela primeira vez em
Mumbai, na Índia, o sangue do fenótipo Bombaim - o nome se refere à cidade
indiana - está presente em apenas 0,1% da população. Ele é caracterizado pela
ausência do antígeno H, presente em 99,9% das pessoas. Os indivíduos com sangue
do fenótipo Bombay tem um gene raro que dá a eles um anticorpo contra esse
antígeno. Se receberem um sangue que não seja Bombay, podem ter grave reação e
até morrer.
No Brasil, já foram
encontradas pessoas com esse subtipo no Ceará, em São Paulo e em Estados da
Região Sul. Em 2014, o Ministério da Saúde criou o Cadastro Nacional de Sangue
Raro. Depois disso, 25 solicitações de consulta já foram atendidas em
território nacional.
Colaboraram Fabiana
Cambricoli, Lauriberto Braga, Santiago Torrado, Foto: Foto: Lisandro
Pinzon/Ministério da Saúde da Colômbia, Especial para O Estado