Estudo publicado na Cell indica
que queda nos níveis de um fosfolipídeo no sangue do hospedeiro humano sinaliza
para o Plasmodium que é hora de se transformar na forma sexuada capaz de
infectar o mosquito vetor (imagens: divulgação / Cell)
Pesquisadores do Reino Unido e dos
Estados Unidos começaram a desvendar os mecanismos pelos quais o parasita
causador da malária regula uma etapa crucial do seu ciclo de vida: o momento em
que ele para de se reproduzir dentro das células sanguíneas do hospedeiro
humano – causando sintomas como febre, dores e calafrios – e assume uma forma
sexuada conhecida como gametócito, capaz de infectar o mosquito vetor.
De acordo com um
estudo publicado recentemente na revista Cell,
a queda nos níveis plasmáticos de um fosfolipídeo chamado lysofosfatidilcolina
parece funcionar como um sinal de que é hora de “abandonar o barco” e buscar um
novo hospedeiro.
O estudo foi apresentado na
Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP),
pelo professor de Parasitologia Molecular da Universidade de Glasgow (Escócia)
Matthias Marti. A palestra ocorreu em março, durante a São Paulo School For
Advanced Science In Cell Biology (SPCell), evento apoiado pela FAPESP por meio da
modalidade Escola
São Paulo de Ciência Avançada.
“O entendimento de como ocorre
a transformação do parasita em gametócito pode apontar alvos para o
desenvolvimento de fármacos capazes de bloquear a transmissão da doença”, disse
Marti em entrevista à Agência FAPESP.
Os resultados obtidos até o
momento são de experimentos feitos in vitro com protozoários
da espécie Plasmodium falciparum, responsável pela maioria dos
casos de malária em humanos e também pelos mais graves. O objetivo era
investigar quais fatores no organismo hospedeiro poderiam alertar o parasita de
que seria o momento de avançar em seu ciclo de vida.
“Há muitas hipóteses para
explicar o fenômeno, como a existência de fatores genéticos ou de moléculas
liberadas pelo sistema imune humano. Nós estávamos desconfiados de que poderia
ser o estado nutricional do hospedeiro. Ou seja, uma vez que o parasita percebe
que há disponibilidade limitada de nutrientes, ele busca meios de ser
transmitido para outro organismo”, disse Marti.
Para testar sua teoria, o
britânico realizou uma série de ensaios em colaboração com Jon Clardy, da
Escola de Medicina Harvard, nos Estados Unidos, e outros colaboradores.
Os cientistas observaram que
quando o soro sanguíneo convencional era adicionado à cultura de parasitas,
nenhum indivíduo se transformava em gametócito e todos continuavam a se
reproduzir normalmente nas células sanguíneas. Porém, quando a cultura era
tratada com um soro que já tinha previamente sido exposto aos parasitas, eles
passavam a se reproduzir mais lentamente e uma parte dos indivíduos se
transformava em gametócito.
“Certamente algo importante
estava faltando, então decidimos fracionar o soro e testamos seus componentes
um a um nas culturas”, contou Marti.
Inicialmente, os pesquisadores
imaginaram que o nível de glicose no sangue seria o fator-chave para a mudança
de fase parasitária. No entanto, os experimentos mostraram que mais gametócitos
se formavam na ausência da lysofosfatidilcolina – um fosfolipídeo bastante
abundante no sangue humano e essencial para a síntese de membranas celulares.
“Nossos testes mostraram que
esse fosfolipídeo é rapidamente sequestrado pelo parasita, que quebra a molécula
e usa seus componentes para sintetizar a membrana de novos parasitas. Na falta
do nutriente, cerca de 30% dos protozoários que infectam as células sanguíneas
se transformam em gametócitos. Os outros 70% passam a se replicar mais
lentamente”, explicou Marti.
Segundo o pesquisador, o nível
de lysofosfatidilcolina no sangue normalmente cai cerca de cinco vezes durante
qualquer processo infeccioso importante – sendo esse fator considerado um
marcador inespecífico de inflamação. No caso da malária, o fosfolipídeo parece
funcionar como um sensor ambiental para o parasita
“O Plasmodium se
desenvolve em um ambiente em constante alteração – tanto no hospedeiro humano
quanto no mosquito. Ele precisa colher amostras do ambiente com frequência e
ajustar seu metabolismo quando necessário”, disse Marti.
O cientista acredita que o
mesmo mecanismo esteja presente no caso da espécie Plasmodium vivax,
principal responsável pelos casos de malária no Brasil. No entanto, não foi
possível testar a hipótese no laboratório porque essa espécie não sobrevive em
cultura.
Lacunas no conhecimento
Entender como exatamente a
ausência de lysofosfatidilcolina resulta na transformação em gametócito é um
dos objetivos atuais do grupo coordenado por Marti. Segundo o cientista, porém,
há várias outras questões ainda em aberto.
“Quando tiramos o fosfolipídeo
do soro, apenas uma parte dos parasitas avança no ciclo de vida. Por que não
todos? Como é decidido quais indivíduos vão se transformar em gametócitos e
quais vão permanecer se reproduzindo assexuadamente? É possível que seja um
processo aleatório ou que existam outras moléculas no meio extracelular
regulando o processo. Não entendemos ainda”, disse o pesquisador.
Outra possibilidade futura é
avaliar se o tipo de dieta do hospedeiro altera os níveis de
lysofosfatidilcolina e se isso influencia no processo infeccioso ou na
transmissão do parasita. Também é possível olhar em populações humanas como a
variação no nível do fosfolipídeo durante a infecção impacta o processo de
transmissão.
“Duas das enzimas usadas pelo
parasita para metabolizar essa molécula já são alvos conhecidos de drogas, que
estão atualmente em fase de ensaios clínicos. A nova descoberta abre a
possibilidade de fazer experimentos mais direcionados”, comentou Marti.
Sensores do microambiente
Para a professora da FCF-USP e
organizadora da SPCell, Celia Garcia, os estudos conduzidos por Marti oferecem
uma grande contribuição para o entendimento dos mecanismos de sinalização e
comunicação do Plasmodium com o microambiente do hospedeiro
durante o estágio de gametócito.
Em seu laboratório, Garcia coordena
um esforço complementar: entender como o parasita percebe o microambiente do
hospedeiro durante o período de desenvolvimento dentro do glóbulo vermelho.
“O estudo da sinalização
celular na relação Plasmodium-hospedeiro deu um salto nos últimos
anos e vários trabalhos vêm sendo publicados por diversos laboratórios,
reforçando a relevância deste conceito de sensores de microambientes para
regular aspectos do ciclo de vida do parasita da malária, o que era impensável
e criticado anos atrás”, disse a pesquisadora.