Dados coletados pela Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS) mostram que os efeitos da judicialização da
saúde, que tem preocupado tribunais por todo o país, são bem menos relevantes
do que parecem, apesar das críticas e do estrangulamento da autonomia do
órgão. O cenário transformou a agência em alvo constante, embora, segundo seus
dirigentes, ela tenha atingido agora, 18 anos após a fundação, sua
"maturidade regulatória".
Essa visão foi compartilhada
por diretores da agência com operadores do Direito e da Saúde e ministros do
Superior Tribunal de Justiça em evento realizado nesta quarta-feira, no
auditório da corte. O diretor de desenvolvimento Rodrigo Aguiar afirmou que
apontar a judicialização da saúde como problema “é pouco criterioso”: os
números vultosos ficam pequenos diante do gigantismo do setor.
Usou como exemplo o fato de
operadoras terem desembolsado, em 2017, R$ 865 milhões para custeio de
cobertura determinada judicialmente, em um universo de R$ 179 bilhões
movimentados. Da mesma forma, a ANS recebeu no ano passado pouco mais de 90 mil
reclamações, quando o número total de beneficiários era de 47,3 milhões,
com 1,5 bilhão de procedimentos realizados.
“A gente se depara com números
que são impressionantes, mas não significativos percentualmente”, afirmou
Rodrigo Aguiar. Para o Judiciário, no entanto, a preocupação não para de
crescer. Dados apresentados pelo ministro do STJ, Ribeiro Dantas, mostram que a
corte já julgou 9.289 casos referentes à matéria em 2018. A enxurrada de
processo tem gerado definição de recursos repetitivos na 2ª Seção e súmulas
editadas.
A robustez do setor e a
sensibilidade da questão da saúde fazem com que, apesar de a agência
relativizar os dados, ela seja alvo das principais críticas.
Autonomia e segurança jurídica
Diretora de fiscalização da agência, Simone Freire classificou os
questionamentos quanto à atuação da ANS como “críticas insanas” e vazias feitas
por “pseudo-especialistas que adoram entrevista”. Entre elas, a ideia de que
sua atuação tem motivação política e atende a interesses escusos. Recentemente,
foi reativado o Conselho da Saúde Suplementar (Consu), também ligado ao
Ministério da Saúde e dotado de poderes para rever os atos da agência.
“Ouvimos sobre a intenção de
ressuscitar um órgão que está extinto há 18 anos e que, na minha opinião, é uma
coleira da ANS. É a forma de conseguir apoio político ao invés de técnico”,
disse Simone Freire. “Vivemos na era do ‘não importa o que, importa quem’”,
complementou.
O CONSU é composto pelos
ministros da Saúde, da Fazenda, da Justiça, o superintendente da Susep
(Superintendência de Seguros Privados) e outros dois secretários ligados ao
Ministério da Saúde. Foi criado em 1998 para regulamentar o setor da saúde
suplementar, que no mesmo ano teve editada a chamada Lei dos Planos de Saúde
(Lei 9.656). Seu esvaziamento se deu justamente em 2001, com a criação da
ANS.
“Autonomia e respeito às
normas são sinônimos de sustentabilidade do setor. Senão você enfrenta um
ambiente de instabilidade jurídica tão grande que não consegue mais ter
investimento. Ninguém investe em algo que não sabe o que vai dar. É interesse
de todos que o órgão regulador seja respeitado naquilo que faz”, explicou.
Críticas durante a “maturidade
regulatória”
Segundo o ministro do Tribunal
de Contas da União, Bruno Dantas, toda macroligitiosidade traz uma falha
flagrante de regulação do estado. Por isso, a corte tem focado em auditorias
que avaliam a atividade do estado, com impacto em milhões de pessoas, embora
com contexto individualizado. A ANS, naturalmente, esteve na mira e foi alvo de
dois acórdãos citados durante o evento no STJ.
Um deles (acórdão 79/2017) diz
respeito à ausência de plano estruturado de fiscalização, o que faz com que ela
seja reativa, sempre “enxugando gelo”. O outro (acórdão 679/2018) aborda
falhas na metodologia de cálculo dos reajustes dos planos individuais,
determinados pela ANS e que, segundo o TCU, não usava a chamada “memória de
cálculo” das operadores de maneira aderente à realidade.
Simone Freire nega as falhas na
fiscalização da agência e afirma que o foco é preventivo, enquanto as multas
pecuniárias recolhidas já bateram a meta de R$ 3 bilhões por ano. No mais, a
ANS tem encaminhadas duas normativas que prometem corrigir duas falhas
históricas, segundo Rodrigo Aguiar: o reajuste dos planos individuais e a
incorporação no rol de tratamentos e medicamentos.
“Esses temas eram feitos de
forma precária e não adequada. Estamos resolvendo agora, com duas resoluções
praticamente aprovadas e já pacificadas entre o corpo técnico e a sociedade
civil, mediante audiência pública”, afirmou o diretor. “Estamos em um momento
de maturidade regulatória.”
Segundo o diretor de normas e
habilitação da ANS, Rogério Scarabel, a nova metodologia de cálculo de reajuste
se baseia no perfil de risco da carteira de contratações individuais, excluindo
os contratos coletivos, o que deve evitar variação e gerar previsibilidade.
"E até o final de 2018
devemos focar no tema da atualização das regras de portabilidade. Isso vem
sendo discutido há vários anos e pretendemos colocar essa discussão para
resolver a questão da concorrência no setor", adiantou.
ANS cobra empenho das
operadoras
Simone Freire também se manifestou sobre um dos pontos que, em sua opinião,
pode levar à sustentabilidade do setor: o tratamento dispensado pelas
operadoras de planos de saúde aos consumidores. Ela identifica que, apesar de
melhoras recentes, o beneficiário não consegue se sentir acolhido no sistema, o
que também contribui com a judicialização.
“A atenção que é despendida ao
cliente no momento em que ele está mais vulnerável está longe, muito longe de
ser o ideal. Por incrível que pareça, as operadoras fazem o ciclo de culpados
do negócio: a cada determinado tempo, algo é culpado pelo desempenho”, criticou
a diretora da ANS.
O modelo de negócio precisa
ser alterado, portanto. “As operadoras basicamente se colocam como
intermediária financeira: você paga para mim, eu te direciono ao médico e não
estou nem aí com o que vai acontecer com você, mas vou pagar sua conta”, exemplificou.
Com essa inclusão, aliada à autonomia da ANS, o setor pode se tornar
sustentável novamente.
“É nosso trabalho, ao editar a
regulação, fazer simulação dos efeitos que isso vai ter em todo mundo, não só
as operadoras: os beneficiários, a casa e os prestadores, que são parte
relevante do mercado e atualmente demonizados com injustiça. A gente precisa
ter garantida a autonomia técnica para que a ANS se mantenha da forma como foi
criada: para ser órgão de estado, não de governo”, apontou Simone Freire.
Por Danilo Vital – Consultor
Jurídico