Lei de Propriedade Industrial,
aprovada pelo Brasil em 1996, teve impacto sobre setor farmacêutico
As patentes são um mecanismo
de estímulo à inovação por meio da reserva de mercado. Ou seja, empresas que
desenvolvem criações comprovadamente inéditas e com tecnologia
replicável são premiadas com o direito de exploração exclusiva do produto
por um certo período. Cria-se, assim, uma exceção à regra da livre concorrência
em nome do avanço científico.
Na área de medicamentos, a
aplicação desse mecanismo é controversa. De um lado, a indústria farmacêutica
argumenta que somente as patentes podem assegurar o desenvolvimento de
tratamentos mais eficientes, com redução dos efeitos colaterais. Por sua vez,
pacientes reivindicam um custo de tratamento menor, via genéricos, uma vez que
o monopólio obtido pela proteção de mercado encarece substancialmente os
preços.
O coordenador da Campanha de
Acesso a Medicamentos Especiais da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF),
Felipe Carvalho, afirma que o modelo atual impede a expansão de tratamentos
importantes.
“A pneumonia é a principal
causa de mortes de crianças no mundo, e, como a vacina é cara, vários governos
não incorporam no calendário de vacinação. O mesmo acontece com a hepatite C,
por saberem que não terão condições de pagar os medicamentos”, detalha.
O representante da MSF aponta
que o atual sistema de incentivo à inovação não converte prioridades de saúde
em prioridades de pesquisa. A tuberculose, doença infecciosa mais letal do
mundo, exemplifica esse quadro. Como hoje atinge principalmente populações de
países pobres, as gigantes farmacêuticas deixaram de investir na pesquisa de
novos tratamentos para a doença. Desde 2012, Pfizer, Novartis, AstraZeneca e
Vertex fecharam seus programas de Pesquisa e Desenvolvimento para a
tuberculose.
No Brasil, os efeitos das
patentes sobre preços de medicamentos geraram discussões, principalmente, no
campo da aids. O país é considerado referência por ter universalizado o
tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas vê o orçamento do programa
pressionado pela verba para os medicamentos patenteados.
Um deles, o Efavirenz, foi
alvo de licença compulsória em 2007. O remédio era usado por 38% das pessoas em
tratamento no país, e o governo apontou a medida como necessária para garantir
a manutenção da oferta. Na ocasião, a economia para os cofres públicos foi
estimada em 236,8 milhões de dólares.
A utilização mais frequente
desse mecanismo é defendida por organizações da sociedade civil que defendem a
ampliação do acesso a medicamentos. Todavia, é evitada por governos pelo
desgaste comercial com as empresas e os governos de seus países. Além disso, a
indústria farmacêutica se vale de seu poder econômico para influenciar
decisões.
“Lobby brutal”
Em tese de doutorado defendida
em 2015 no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e
Desenvolvimento da UFRJ, a pesquisadora Renata Reis se debruçou sobre a atuação
de grupos de pressão na Câmara dos Deputados durante o processo de aprovação da
Lei de Propriedade Industrial, em 1996.
“Houve um lobby brutal, desigual.
A lei só perdeu em número de emendas parlamentares para o próprio processo
constituinte. Os negociadores do Itamaraty que tratavam o tema para fora do
Brasil usam expressões como ‘rolo compressor’. Entrevistei vários parlamentares
da Comissão Especial que diziam, com todas as letras: ‘Nós não sabíamos do que
se tratava, esse tema é muito difícil'”, diz.
A partir do Acordo TRIPs, um
dos tratados assinados em 1994 que culminaram na criação da Organização Mundial
do Comércio (OMC), os países signatários ficavam obrigados a reconhecer
patentes mesmo em áreas sensíveis, como medicamentos, alimentos e químicos.
Como isso traria grandes impactos aos mercados nacionais, foi concedida uma
janela até 2005 para que os países de renda média implementassem as novas
regras.
Chama atenção, portanto, que o
Brasil tenha “corrido” para mudar sua legislação em favor das empresas, com a
aprovação da Lei de Propriedade Industrial já em 1996. Os artigos 230 e 231 da
lei autorizavam a revalidação de patentes já concedidas no exterior –
conhecidas como patentes pipeline. Por esse mecanismo, 1.100
pedidos de patentes foram automaticamente concedidos já no ano seguinte.
Entre os produtos que ficaram
protegidos por monopólio durante 20 anos – período de validade das
patentes pipeline determinado pelo Instituto Nacional da
Propriedade Industrial (INPI), contado a partir do primeiro depósito do
pedido – estavam medicamentos importantes do tratamento da aids.
Um estudo de 2010 chefiado
pela professora Lia Hasenclever, do Instituto de Economia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), constatou que o prejuízo gerado aos cofres
públicos pela revalidação das patentes de apenas cinco desses remédios oscilava
entre 420 milhões e 519 milhões de dólares.
“Considerando que o caso
discutido abrange apenas o total da compra de cinco medicamentos, no período
entre 2001 e 2007, pelo Programa Nacional de DST/aids, e que o número de
patentes pipelinede medicamentos, como visto, chega a 1.182,
pode-se supor que o país esteja tendo um prejuízo na ordem dos bilhões de
dólares”, afirma o estudo.
Possíveis impactos de decisão
do STF
Nesta quarta-feira (05/09), o
Supremo Tribunal Federal retirou de pauta uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade que pede a anulação dos artigos da lei que autorizam as
patentes pipeline. O julgamento da ação, proposta pela Procuradoria
Geral da República em 2009, havia sido agendado para esta quinta-feira. Ainda
não há nova data para a votação.
Quando assumiu a presidência
do STF, em 2016, a ministra Cármen Lúcia classificou o caso de um dos mais
importantes em tramitação na corte. Caso decida pela inconstitucionalidade, o
tribunal pode determinar o caráter retroativo da sentença. Nesse caso, os
valores bilionários obtidos indevidamente desde 1997 deveriam ser devolvidos
pelas empresas detentoras dessas patentes.
Além disso, há diversos
processos em tribunais do país impetrados por farmacêuticas que detiveram os
monopólios via pipelines por 20 anos contra a concorrência
indevida de empresas que desenvolveram concorrentes para produtos protegidos
por essas patentes.
Para Tatiane Schofield,
diretora jurídica da Interfarma, associação que congrega empresas da indústria
farmacêutica, o STF não deveria acatar a ação movida pela Procuradoria Geral da
República pelo impacto internacional negativo que a decisão teria. Ela
argumenta, ainda, que a elevação da expectativa de vida e a queda da
mortalidade infantil no período de vigência da lei evidenciam como a proteção
industrial na área de medicamentos trouxe benefícios à população.
“É inegável a mudança. Doenças
que matavam não matam mais. Por exemplo, as altamente infecciosas. É preciso
reconhecer que o inovador vem incentivar as novas curas, e o genérico traz
acesso a custos mais acessíveis para a população. O acesso vem aumentando
constantemente ao longo dos anos”, defende.
Fonte: DW