Em artigo na Folha de São Paulo, Isaias Raw fala da importância da vacina no Brasil
Vacinar é a arma mais eficaz e de menor custo para controlar doenças infecciosas. Trazida por imigrantes e turistas ou levadas das escolas para as casas por crianças não vacinadas, tais doenças podem, como em 1918 (influenza) e 1975 (meningite), tornar-se epidêmicas e matar milhares de pessoas.
Desde 1984, não aceito que o Instituto Butantan seja o preposto do grande cartel das multinacionais, oferecendo-se para apenas envasar vacinas importadas à granel -que são rotuladas como feitas no Brasil e fornecidas para o Ministério da Saúde sem licitação. Liderei um grupo que desenvolveu a produção das vacinas de difteria, tétano, coqueluche, hepatite e raiva. Até 2009, produzimos cerca de 700 milhões de doses que se mostraram eficazes e seguras, transformando o Butantan no maior produtor do continente.
Construímos uma fábrica de vacinas contra a influenza (gripe) mas, devido a problemas burocráticos, levamos anos até torná-la operacional. Isso nos obrigou a envasar, durante uma década, 200 milhões de doses importadas à granel. Quando finalmente produzimos as primeiras 20 milhões de vacinas, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) objetou que estávamos licenciados para envasar, não para produzir. Tivemos que descartar as doses e importar o granel, gastando cerca de US$ 20 milhões. Finalmente aprovados pela Anvisa em 2013, produzimos 35 milhões de vacinas, mas o Ministério da Saúde decidiu aproveitar apenas 10 milhões e importar o restante.
Em nenhum momento paramos de inovar e de introduzir novas tecnologias de produção. Desenvolvemos uma vacina contra coqueluche mais segura do que a vacina pertussis acelular, que resultou em mais de 50 mil casos da doença por ano só nos Estados Unidos. Ainda assim, seremos, em 2014, o único país a usar a vacina pertussis importada em todas as grávidas! A criada pelo Butantan tem como subproduto um adjuvante que permite economizar 75% das doses de influenza pandêmica, multiplicando a capacidade da fábrica em 400% e reduzindo custos. Nos associamos à agência governamental de pesquisas médicas norte-americana (o NationalInstitutesof Health, NHI), que tinha desenvolvido a dose pentavalente contra o rotavírus. Não conseguimos, porém, completar os testes clínicos, pois um produtor ligado ao ministério passou a envasar uma outra vacina. A um custo de US$ 15 milhões por ano, esse produto demonstrou não proteger do sorotipo de rotavírus prevalente no Brasil.
Ainda em parceria com o NHI, desenvolvemos a produção da vacina tetravalente contra a dengue. Testada nos Estados Unidos, ela demonstrou, com apenas uma dose, eficácia de cerca de 90%. A Anvisa não cumpriu o acordo de permitir o ensaio clínico, barrando a autorização por 18 meses, o que permitiu a uma multinacional testar a sua vacina no Brasil. A fórmula estrangeira demonstrou ser ineficaz em 70% daqueles que receberam três doses! Resultado: perdemos dois anos e a dengue tornou-se epidêmica no Brasil.
Obviamente, somos uma ameaça internacional ao inovar, desenvolver tecnologia e produzir. Temos um mercado cativo de grande porte onde todos têm direito a receber vacinas gratuitamente. Exigências impostas como inadiáveis e a falta de financiamento federal adequado impedem nossa produção, enquanto o Brasil volta a ser colônia e importa mais de US$ 1 bilhão em vacinas.
ISAIAS RAW, 87, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. Foi diretor do Instituto Butantan e presidente da Fundação Butantan.
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(Folha de São Paulo)
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