A identificação inédita de partículas do vírus zika com potencial de infecção em amostras de saliva e urina de dois pacientes, anunciada em fevereiro, alertou para a possibilidade de outras vias de transmissão da doença, além das já conhecidas. Liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) em parceria com o Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), a pesquisa acaba de ter os dados completos divulgados. O estudo aponta que os vírus ativos foram encontrados entre as amostras com as cargas virais mais altas. Além disso, há evidências de que em amostras de urina com pH ácido, a quantidade de partículas virais infectivas é reduzida ou inexistente. A pesquisa apresenta também o sequenciamento genético completo dos vírus zika ativos isolados de uma amostra de saliva e outra de urina. A análise apontou que as duas cepas pertencem à linhagem asiática e são muito semelhantes a outros vírus zika sequenciados no Brasil e em países das Américas recentemente.
Os pesquisadores ressaltam que outros estudos são necessários para investigar a relevância epidemiológica de possíveis vias alternativas de infecção pelo vírus zika através da urina ou da saliva. Segundo Myrna Bonaldo, chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC e uma das coordenadoras do trabalho, há poucos relatos na literatura científica sobre a presença de vírus ativos do gênero Flavivírus – que inclui zika e dengue, entre outros – em amostras como essas. “O vírus da dengue e o próprio zika tinham sido encontrados na saliva e na urina, mas não na forma infectiva. Na urina, a excreção do vírus da febre do Oeste do Nilo, que também é um Flavivírus, com potencial de infecção já tinha sido registrada, mas ainda se conhece pouco o potencial de transmissão dessa via. No caso do zika, muitos estudos precisam ser realizados para compreender o impacto da presença de partículas virais ativas nessas amostras”, afirma a pesquisadora.
Imagens mostram células Vero antes (à esquerda) e depois (à direita) do contato com amostra de saliva. Efeito citopático – caracterizado pela danificação de células – foi observado, confirmando atividade viral (crédito: LABMOF/IOC/Fiocruz)
Seguindo o compromisso de divulgação imediata dos achados científicos relacionados à emergência internacional de saúde pública causada pelo vírus zika, o artigo foi publicado no site ‘bioRxiv’, que disponibiliza estudos online antes da publicação em revistas científicas. O trabalho contou com a participação de pesquisadores dos Laboratórios de Biologia Molecular de Flavivírus e de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC, Laboratório de Doenças Febris Agudas do INI e Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC).
Metodologia
Ao todo, amostras de nove pacientes que apresentaram sintomas de zika foram analisadas. Em quatro casos, apenas a urina dos pacientes foi coletada. Nos outros cinco, houve coleta tanto de urina, como de saliva. Utilizando a técnica de RT-PCR – que identifica o material genético dos micro-organismos sem diferenciar entre vírus ativos e inativos –, o vírus zika foi encontrado nas amostras de quatro pacientes. No entanto, as partículas virais com potencial para causar infecção só foram identificadas em dois casos. Um deles apresentou vírus ativos na saliva e, em grau reduzido, na urina. No outro caso, apenas a urina do paciente tinha sido coletada e partículas infectivas foram detectadas.
Para investigar o potencial de infecção dos vírus, os cientistas aplicaram duas metodologias que são capazes de indicar a atividade viral. Na primeira, as amostras foram colocadas em contato com células Vero, originadas de mamíferos e amplamente utilizadas nesse tipo de pesquisa. Após uma semana, os cientistas observaram o chamado efeito citopático, caracterizado pela destruição ou danificação das células, o que comprova a atividade viral. O fenômeno foi verificado na saliva do paciente A – que continha aproximadamente 74 mil partículas virais por ml – e na urina do paciente B – na qual havia cerca de 2,6 mil partículas virais por ml.
A presença de vírus ativos na urina do paciente A foi identificada em outro experimento, chamado de ensaio de formação de placas. Nesse método, logo após colocar as amostras em contato com as células Vero, os pesquisadores aplicam uma substância que impede que os vírus se espalhem. Dessa forma, é possível observar diferentes áreas de atividade viral, que correspondem aos locais onde as partículas virais infectivas se depositaram no início do experimento. No teste, uma área de atividade viral foi observada após aplicação da urina do paciente, correspondendo à proporção de 10 partículas virais ativas por ml de urina. Em contrapartida, a amostra de saliva do paciente A revelou oito áreas de atividade viral, indicando 80 partículas virais infectivas por ml de saliva.
Teste com células Vero mostra oito áreas de atividade viral após contato com amostra de saliva (à esquerda) e uma única área após contato com urina do mesmo paciente (à direita) (crédito: LABMOF/IOC/Fiocruz)
Perguntas em aberto
Segundo Myrna, avaliar a quantidade de vírus infectivos na saliva e na urina pode ajudar a investigar o potencial dessas amostras para transmissão da doença. “Para que a infecção ocorra, é necessária uma quantidade mínima de vírus, chamada de dose infectiva. No caso do zika na saliva e na urina, ainda não sabemos qual seria essa dose e precisamos investigar”, explica ela. A pesquisadora acrescenta que diversos fatores podem levar à inativação dos patógenos, reduzindo a quantidade de partículas infectivas. “Na amostra de saliva, verificamos uma partícula ativa para cada mil vírus detectados. Isso ocorre porque a saliva contém proteínas e fatores antivirais”, comenta.
Em relação à urina do paciente A, o estudo destaca que, apesar de conter a maior carga viral detectada na pesquisa, com quase 253 mil partículas virais por ml, a amostra apresentou quantidade reduzida de vírus infectivos, indicando que o pH ácido pode ter inativado a maior parte dos patógenos. “Em meios com pH abaixo de 6,5, ocorre uma mudança na estrutura dos Flavivírus. O esperado é que eles percam o potencial de infecção. Geralmente, o pH da urina varia entre 4,5 e 8 e, nesse caso, verificamos pH de 5,6. Provavelmente, por causa disso, a quantidade de partículas infectivas se tornou muito baixa”, pondera Myrna. Na amostra de urina do paciente B – que apresentou efeito citopático – a avaliação do pH e o ensaio de formação de placas não puderam ser realizados por conta da reduzida quantidade de amostra recebida, suficiente apenas para o primeiro experimento.
O artigo ressalta que, além de características do vírus, outros fatores podem influenciar na possível transmissão pela saliva e pela urina. No caso da febre do Oeste do Nilo, por exemplo, ainda não foi identificado se a urina pode ser um meio de propagação da doença de uma pessoa para outra. Porém, alguns estudos consideram que a excreção de vírus ativos na urina indica risco de transmissão em transplante de rim, caso o doador esteja infectado. Considerando a saliva, a literatura indica que as infecções virais pela cavidade oral são raras porque características da mucosa da boca impedem a penetração dos vírus no organismo. No entanto, o risco de transmissão poderia ser maior quando essa mucosa é rompida por ferimentos ou outras infecções.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a principal forma de transmissão do vírus zika é pela picada de mosquitos do gênero Aedes, especialmente da espécie Aedes aegypti. Além disso, há evidências de que a doença pode ser transmitida através de relações sexuais, com casos desse tipo relatados em seis países. Pesquisas investigam também a suspeita de transmissão do vírus por transfusão de sangue de doadores infectados.
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