Durante
décadas, o rotavírus foi responsável por surtos de infecções gastrointestinais
e diarreia, sobretudo em crianças menores de cinco anos. Com o controle baseado
em vacinação, este cenário mudou nos últimos anos, abrindo espaço para um vírus
menos conhecido: o norovírus. Apesar de ser, hoje, a principal causa das
diarreias provocadas por vírus no mundo, pouca gente já ouviu esse nome. Os
principais desafios incluem as frequentes mutações genéticas e recombinações do
vírus, que possibilitam a uma pessoa se infectar mais de uma vez e dificultam o
desenvolvimento de uma vacina. Para entender as origens dos casos de diarreia,
pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) têm analisado as cepas do
vírus que circulam no Brasil, causando surtos com diferentes proporções.
“Durante
muito tempo, a incidência de norovírus esteve associada a ambientes confinados,
como creches, asilos ou navios de cruzeiro. Hoje, a transmissão é amplamente
distribuída e atinge pessoas de diferentes idades, em diversos locais”, explica
o virologista Tulio Machado Fumian, pesquisador do Laboratório de Virologia
Comparada e Ambiental do IOC. Um exemplo recente aconteceu em abril, quando
mais de quatro mil pessoas foram infectadas na Espanha após o consumo de água
mineral contaminada. Também recentemente, o peso financeiro dos surtos foi
calculado em uma pesquisa da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos: os
encargos ao redor do mundo podem chegar a US$ 64 bilhões por ano, incluindo
gastos de sistemas de saúde e perda de produtividade.
Em
pesquisa publicada na revista científica Plos One, os pesquisadores do
Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental encontraram elevadas taxas de
recombinação genética entre os norovírus associados a surtos ocorridos no
estado do Rio Grande do Sul, entre 2004 e 2011. Estudo anterior já havia
constatado que 45% dos surtos de diarreia identificados na região durante o
período foram provocados pelo norovírus – os dados integram a dissertação da
estudante Juliana da Silva Ribeiro Andrade, desenvolvida no Programa de
Pós-graduação Stricto sensu em Biologia Parasitária do IOC.
Segundo
Tulio, as mutações ocorrem quando duas cepas de diferentes genótipos de
norovírus estão presentes em um mesmo indivíduo, em uma situação de coinfecção.
“O processo de recombinação se desenvolve no interior das células infectadas.
Na etapa de replicação viral, dois genótipos diferentes dão origem a uma
terceira cepa do vírus”, contextualiza Tulio. Em seguida, esta nova cepa poderá
ser transmitida.
No
estudo, foram consideradas 38 cepas circulantes no Rio Grande do Sul,
responsáveis por surtos de diarreia, obtidas a partir de amostras clínicas de
pacientes, incluindo 11 cepas do genótipo GII.4, que é o mais prevalente, além
de 27 outras cepas que também circularam na região. Para verificar a presença
de eventos de recombinação, foi realizado o sequenciamento genético de todas as
amostras. As cepas do tipo GII.4 não apresentaram recombinação genética. Já
entre as 27 amostras dos outros tipos circulantes do norovírus, 23 foram
identificadas como cepas recombinantes. Isso significa que, em 85% dos casos, o
vírus causador do surto foi derivado da combinação anterior de dois genótipos
diferentes que se ‘encontraram’ em um mesmo paciente, gerando uma versão recombinante.
“Até o momento, havia uma lacuna de informação no que diz respeito à circulação
de cepas recombinantes na população brasileira, com apenas um registro anterior
no Norte do país. Vimos que esta circulação é mais frequente do que se
imaginava e que isso não está restrito a apenas uma região do país. Este
conhecimento é de grande relevância, uma vez que o alto grau de mutações e
recombinações é uma das causas da reinfecção pelos norovírus”, destaca Tulio.
De
acordo com o pesquisador, conhecer os mecanismos de evolução desses vírus é
fundamental para o desenvolvimento de um imunizante – a exemplo do que acontece
hoje com a vacina para gripe, que conta com uma formulação adaptada aos vírus
circulantes. “Um dos principais empecilhos para o desenvolvimento de uma vacina
eficaz tem sido a rápida evolução dos norovírus por mutação pontual e
recombinação genética”, conclui o pesquisador. A lavagem das mãos com água e
sabão antes das refeições ou após usar o banheiro, e a higienização dos
ambientes usados para manipular alimentos são algumas das ações que podem
contribuir para a diminuição da transmissão do norovírus.
Lucas Rocha (IOC/Fiocruz)
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