Uma
doença milenar que ainda tira o sono de cientistas na tentativa de desvendar
seus mistérios, a hanseníase já foi considerada castigo dos deuses e ainda é
motivo de estigma e exclusão social. Crendices e preconceitos à parte, a
ciência avançou em estratégias de tratamento capazes de garantir cura, mas
muitas perguntas ainda precisam de respostas. Um destes questionamentos busca
entender de que forma a Mycobacterium leprae – bactéria causadora da doença –
consegue ‘enganar’ o sistema imunológico humano. A pergunta é fundamental,
pois, dependendo do resultado do embate entre célula e bactéria, o indivíduo
poderá desenvolver a hanseníase [desde pequenas manchas na pele até a limitação
de movimentos, chegando à incapacidade, com restrições de movimentos nas mãos
ou pés, por exemplo.
Um
estudo pioneiro desenvolvido no Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) desvendou
um dos mecanismos de escape que permite ao bacilo continuar vivo e se replicar
nas células humanas. Os cientistas descobriram que, como num baile de máscaras,
o M. leprae se disfarça, sendo capaz de provocar reações que seriam comuns em
células infectadas por um vírus. Dessa forma, o bacilo de Hansen leva o sistema
imunológico a aplicar a estratégia de combate errada. Assim, a resposta
imunológica do paciente, que deveria protegê-lo de uma infecção por bactéria,
fica comprometida.
O
resultado inédito, fruto de anos de trabalho desenvolvidos nos Programas de
Pós-graduação Stricto sensu em Biologia Celular e Molecular e em Biologia
Computacional e Sistemas do IOC, acaba de ser publicado no The Journal of
Infectious Diseases, importante revista científica internacional voltada para
pesquisas sobre doenças infecciosas. Clique aqui e confira.
Macrófago
infectado com M. leprae (em vermelho) durante o silenciamento da expressão do
gene OASL. Durante a redução da expressão desse gene, observamos o
direcionamento da bactéria para o autofagossomo (em amarelo), caracterizando um
processo importante na eliminação do patógeno e confirmando a importância do
OASL na regulação da resposta imune do hospedeiro (foto: Laboratório de
Hanseníase do IOC/Fiocruz).
Os
pesquisadores demonstraram que a infecção por M. leprae desencadeia uma série
de respostas nas células humanas, sendo uma delas considerada de extrema
relevância para a sobrevivência, invasão e ocupação do espaço pela
micobactéria: a ativação de alguns genes, estimulados pela produção da citocina
Interferon tipo 1. A surpresa é que até pouco tempo atrás o Interferon tipo 1
era conhecido apenas por seu papel na resposta imunológica associada à proteção
contra vírus – e, agora, os dados demonstram também sua participação em
infecções associadas a um tipo de bactéria.
Um
longo processo
A
descoberta só foi possível devido a uma extensa cadeia de investigações,
iniciada com o estudo desenvolvido por Anna Beatriz Robottom Ferreira durante
seu doutoramento no Programa de Pós-graduação Stricto sensu em Biologia
Computacional e Sistemas do IOC, entre 2007 e 2011. Utilizando uma técnica de
análise molecular em larga escala conhecida como microarranjo, Anna avaliou a
expressão gênica de células de Schwann, componente do sistema nervoso onde a M.
leprae pode se instalar de forma silenciosa. Dessa maneira, ela identificou que
células de Schwann recém-infectadas por M. leprae apresentaram um perfil de
genes diferencialmente expressos associados à ativação da via de Interferon
tipo 1.
“Esse
é um tipo de resposta observado principalmente quando células são infectadas
por vírus. O registro desse tipo de ativação em células infectadas por
bactérias intracelulares, como é o caso da M. leprae, permanece pouco
conhecido, o que nos levou a crer que poderíamos estar nos aproximando de uma
importante descoberta”, relembra a ex-aluna.
Orientador
de Anna Beatriz, o pesquisador Milton Ozório Moraes, chefe do Laboratório de
Hanseníase do IOC, explica que ainda restam perguntas sobre os mecanismos que
permitem a invasão celular pela micobactéria e que agem como gatilho para o
início da reação imunológica. “O M. leprae é a única bactéria que consegue penetrar
no nervo, invadindo especialmente as células de Schwann e permanecendo ali, de
forma silenciosa. A técnica de microarranjo nos ajudou a começar a entender
todo esse processo”, afirma.
O
estudo identificou, ainda, que a expressão do gene OASL, também relevante em
infecções virais, estava presente no processo de ativação do Interferon tipo 1.
Ao ativar essa molécula, o M. leprae desvia a atenção das células de defesa:
deixa de ser enxergada como uma bactéria e, sim, como um vírus, prejudicando as
estratégias de defesa do corpo humano, que acaba confundindo o alvo a ser
combatido.
Mecanismo
de sobrevivência confirmado
Para
desvendar a identidade ‘por trás da máscara’, faltavam alguns passos. Era
necessário comprovar a hipótese de que o gene OASL pudesse ter relevância na
sobrevivência da bactéria. Nesse momento, entrou no percurso o biólogo Thiago
Gomes Toledo-Pinto, estudante de doutorado no Programa de Pós-graduação Stricto
sensu em Biologia Celular e Molecular do IOC. Ele investigou se a indução da produção
de Interferon tipo 1 atuaria como um mecanismo de sobrevivência do M. leprae em
macrófagos humanos, outro tipo celular preferencial para a infecção pelo
bacilo.
Nessa
etapa da pesquisa, a expressão do gene OASL foi silenciada (desligada) durante
a infecção dos macrófagos. “A experiência comprovou a ideia de que a presença
de OASL após a infecção favorecia a sobrevivência da bactéria, enquanto sua
ausência resultou na redução da viabilidade intracelular do M. leprae”,
comemorou Thiago. Essa etapa estava ainda associada ao aumento da autofagia, um
importante processo do hospedeiro para eliminação das bactérias.
Para
Milton Ozório, que também orienta o estudante, os dados sugerem que a ativação
da produção de Interferon tipo 1 é, de fato, capaz de inibir a reposta
protetora do hospedeiro contra micobactérias, criando um ambiente favorável
para a sobrevivência da M. leprae nas células humanas. “Esse resultado
representa um grande avanço para a Ciência na área da hanseníase. Os dados
gerados a partir desse estudo podem contribuir para o desenvolvimento de novas
estratégias de intervenção terapêutica, uma vez que descobrimos que o sucesso
da infecção está estritamente ligado à indução de produção de OASL”, antecipa o
pesquisador.
O
mecanismo de ativação da produção de Interferon tipo 1 pelo bacilo vem se somar
a uma série de estratégias já conhecidas da micobactéria para permanecer viva,
incluindo a inibição do processo natural de morte celular, conhecido como
apoptose.
Nas
próximas etapas da pesquisa, os pesquisadores pretendem ir além: o objetivo é
caracterizar, de forma mais específica o papel desempenhado pelo gene OASL na
persistência e replicação intracelular de M. leprae. Para isso, vão investigar
as etapas da ativação de OASL, para entender melhor os mecanismos que envolvem
essa molécula na regulação da resposta a micobactérias.
Vinicius Ferreira
(IOC/Fiocruz)
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