Na busca por um tratamento
para as leishmanioses que dispense o uso de injeções e tenha menos efeitos
colaterais, pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) estudam o uso
combinado de dois medicamentos que já estão disponíveis no mercado. Apesar de
terem sido desenvolvidos para outros fins, o antidepressivo imipramina e o
antifúngico miconazol têm potencial para agir contra os protozoários do gênero
Leishmania, que causam a doença. Em um artigo publicado na revista Parasites & Vectors,
os cientistas do Laboratório de Bioquímica de Tripanosomatídeos do IOC/Fiocruz
apontam que esses fármacos de uso oral parecem agir através de mecanismos
complementares. Os testes realizados em culturas de células – primeira etapa
nas pesquisas de novos remédios – indicam que a combinação dos compostos
permitiria utilizar doses reduzidas para combater os micro-organismos.
“Os produtos que já são
licenciados passaram por testes de segurança que estão entre as etapas mais
difíceis e caras do desenvolvimento de fármacos. Por isso, o reposicionamento
de medicamentos é uma estratégia importante na busca por novas terapias,
principalmente contra doenças negligenciadas como as leishmanioses”, explica
Eduardo Caio Torres Santos, pesquisador do Laboratório de Bioquímica de
Tripanosomatídeos do IOC/Fiocruz e coordenador do trabalho. “A imipramina e o
miconazol são conhecidamente seguros. Ao associar as duas substâncias e reduzir
as doses, podemos diminuir também os riscos de efeitos colaterais do
tratamento”, acrescenta Valter Andrade Neto, pós-doutorando do mesmo
Laboratório e primeiro autor do artigo.
Causadas por diferentes
espécies de parasitos do gênero Leishmania, as leishmanioses podem se
apresentar na forma cutânea, com feridas na pele; mucosa, com lesões na boca e
no nariz; ou visceral, com danos em órgãos como fígado e baço. Em todos os
casos, o tratamento da infecção costuma ser baseado nos antimoniais
pentavalentes, uma classe de remédios utilizada desde a década de 1940, que
pode causar diversos efeitos colaterais, incluindo danos ao coração, fígado,
pâncreas e rins. Os remédios estão disponíveis apenas em formulações
intravenosas e intramusculares, o que demanda a administração por um
profissional de saúde. Além disso, nos casos em que os parasitos apresentam
resistência aos medicamentos antimoniais, é necessário recorrer a fármacos
ainda mais tóxicos, como a anfotericina B e a pentamidina.
Mecanismo de ação: achado
inédito
Embora o potencial leishmanicida
da imipramina tenha sido observado na década de 1980, seu mecanismo de ação
contra os parasitos ainda não tinha sido descrito e a combinação com outras
substâncias também nunca havia sido testada. Os experimentos feitos com a
espécie Leishmania amazonensis – uma das causadoras da forma cutânea da
infecção – apontam que o fármaco impede a síntese de uma molécula fundamental
para a sobrevivência dos parasitos: o ergosterol, tipo de lipídeo que compõe a
membrana dos micro-organismos, além de participar de vias de sinalização
intracelular. De forma inédita, a pesquisa indica que a imipramina tem a
capacidade de inibir uma enzima da L. amazonensis chamada de
C24-metiltransferase, que atua na fase final da síntese do ergosterol. “Este é
um alvo interessante porque o ergosterol não é produzido em células de
mamíferos. Logo, um fármaco que afeta a síntese dessa molécula não deve
prejudicar o organismo dos pacientes”, comenta Eduardo Caio.
Utilizado para combater
infecções causadas por fungos, o miconazol também bloqueia a síntese do
ergosterol nos parasitos, porém usando um mecanismo de ação diferente: ele age
sobre a enzima conhecida como C14-desmetilase. De acordo com Valter, o fato de
os dois fármacos atuarem em pontos distintos da mesma via bioquímica é positivo
para o efeito antiparasitário. Nos testes, a combinação dos fármacos apresentou
efeito aditivo, ou seja, a ação de um somou-se à do outro. “Verificamos que não
existe antagonismo entre imipramina e miconazol. Com o efeito aditivo, existe o
potencial de usar quantidades menores de cada um dos fármacos e obter um
resultado melhor”, destaca o pós-doutorando.
Realizados com a forma
amastigota do parasito L. amazonensis – a mesma etapa do desenvolvimento do
parasito que é encontrada nos pacientes –, os experimentos mostraram que as
doses isoladas de imipramina e miconazol necessárias para matar cerca de 50%
dos parasitos têm a eficácia muito aumentada quando usadas em conjunto,
chegando a eliminar 90% dos micro-organismos. Em comparação, para alcançar o
mesmo resultado utilizando somente miconazol, seria necessário dobrar a dose.
Os testes confirmaram ainda que as duas substâncias – tanto separadas, como
combinadas – não apresentam efeitos tóxicos para os macrófagos, células de
defesa dos mamíferos que são infectadas pelos parasitos.
Próximas etapas
Ressaltando que o estudo ainda
está na fase inicial, os pesquisadores consideram que os resultados indicam que
a imipramina pode ser útil para o tratamento das leishmanioses, principalmente
através da combinação com outros medicamentos. Segundo eles, além de agir
diretamente sobre as leishmânias, o fármaco possui a capacidade de inibir a
chegada de colesterol até esses micro-organismos, o que pode contribuir para a
eficácia da terapia – um aspecto que pretendem investigar nas próximas etapas
do trabalho. “Assim como o ergosterol produzido pelos parasitos, o colesterol
produzido pelas células dos mamíferos é uma molécula de lipídeo da classe dos
esteróis. Em pesquisas anteriores, observamos que as leishmânias passam a captar
mais colesterol quando a síntese do ergosterol é bloqueada por fármacos.
Imaginando que esse pode ser um mecanismo de escape desenvolvido pelos
parasitos, consideramos que a imipramina pode assumir um efeito ainda mais
importante”, explica Valter.
Para Eduardo Caio, é possível
que o antidepressivo se torne um coadjuvante na terapia das leishmanioses,
potencializando o efeito de fármacos do grupo químico do miconazol – conhecidos
como azóis. Segundo o pesquisador, as substâncias desse grupo são muito potentes
contra os parasitos do gênero Leishmania nos testes em laboratório, mas alguns
ensaios clínicos mostraram eficácia reduzida nos pacientes. “Os azóis são
utilizados há muitos anos para o tratamento de infecções causadas por fungos.
Se a associação com a imipramina conseguir resgatar esses medicamentos como
opções terapêuticas para as leishmanioses, teremos um grande benefício”,
afirma.
Leia mais na Agência Fiocruzde Notícias sobre as formas de transmissão, prevenção e tratamento das
leishmanioses.
Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)
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