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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Quais as tecnologias utilizadas na produção de IFAs?

Publicado por Nelson Ferreira Claro Júnior

Detail-oriented Leader ♦ 18+ Years’ Experience in Chemical Process Development, Drug Master File (DMF) Preparation, Manufacturing & Process Optimization in the Area of Active Pharmaceutical Ingredients (APIs)


Os IFAs podem ser fabricados pela indústria farmoquímica de diversas formas:

·      Extração Vegetal. Exemplo: Cloridrato de Pilocarpina, que é extraído das folhas do Jaborandi (Pilocarpus microphyllus) e utilizado na fabricação de medicamentos para o controle da pressão intraocular elevada (glaucoma).

·      Extração Animal. Exemplo: Heparina Sódica, que é obtida a partir da mucosa intestinal de bovinos e suínos.

·      Síntese Química. Ocorre quando o IFA é obtido através de reações químicas que modificam a estrutura de substâncias mais simples, os chamados materiais de partida, até que se chegue na estrutura química do composto de interesse. A maioria dos IFAs é obtida desta forma.

·      Fermentação Clássica. Exemplo: Tacrolimo, produzido por Streptomyces tsukubaensis e usado para a prevenção da rejeição de órgãos após o transplante.

·      Semissíntese. A semissíntese é um tipo de síntese química que utiliza compostos isolados de fontes naturais (bactérias; culturas de células; material vegetal) como materiais de partida. Exemplo: Azitromicina, antibiótico derivado da Eritromicina A, isolada da bactéria Saccharopolyspora erythraea.

·      Biotecnologia. Corresponde a qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização específica. Exemplos: os anticorpos monoclonais Trastuzumabe e Adalimumabe.

Esta é uma classificação didática, e não leva em consideração as diversas plataformas tecnológicas existentes dentro de cada tipo de processo de fabricação. Por exemplo, o Acetato de Lanreotida é produzido por síntese química a partir da tecnologia de síntese de peptídeos em fase sólida (SPPS, solid-phase peptide synthesis), enquanto o Mesilato de Imatinibe também é produzido por síntese química, porém pode-se empregar neste caso a tecnologia de química em fluxo contínuo.

O processo de fabricação de IFAs por síntese química ou semissíntese é fruto do trabalho dos químicos de desenvolvimento de processos. Estes profissionais, além de grande vivência teórica e prática em química orgânica sintética, devem ter bons conhecimento de operações unitárias na indústria química, dos guias de qualidade nacionais e internacionais (ICH - The International Council for Harmonisation of Technical Requirements for Pharmaceuticals for Human Use, e WHO - World Health Organization) e de química analítica. Já deu para perceber que não é fácil encontrar um profissional com estas competências já desenvolvidas no Brasil, não é? Pode parecer exagero, mas não é não. Uma coisa é propor rotas de síntese que permitam chegar a um composto alvo; outra coisa é propor um processo robusto, reprodutível, viável economicamente e operacionalmente, que permita obter uma substância química em conformidade aos atributos de qualidade necessários para seu uso como IFA, e que atenda às normas de boas práticas de fabricação. Aqui vou ser um pouco mais técnico, e me dirigir aos colegas com experiência acadêmica em síntese orgânica. Imaginem que em um determinado processo o objetivo seja a formação de um nucleófilo através da desprotonação utilizando-se base orgânica. Uma das formas clássicas seria a dissolução do substrato em THF anidro, resfriamento da solução a -78oC, e a desprotonação utilizando-se solução de LDA. Vou lá no almoxarifado, e encontro solução de LDA 2.0M em mistura de THF/heptano/etilbenzeno e solução 1.0M em mistura de THF/hexanos. Decido usar solução 2.0M em THF/heptano/etilbenzeno. Do ponto de vista químico, uma reação clássica. Entretanto, sua implementação em um processo de fabricação de IFA exige várias reflexões sob as óticas de operações unitárias, requisitos regulatórios e necessidades analíticas:

1.      Em uma unidade industrial, não é fácil nem barato resfriar o conteúdo de um reator a -78oC, mesmo que ele seja pequeno. Realmente é necessário conduzir o processo a esta temperatura? Minha experiência mostra que às vezes os procedimentos experimentais que encontramos na literatura científica são fruto de uma metodologia “elegante” que se propaga ao longo do tempo sem questionamentos. Eu não me surpreenderia se o químico de processo parametrizasse velocidade de agitação e taxa de transferência da base sobre a solução contendo substrato de modo que a reação consiga ser conduzida entre 0oC e 10oC;

2.      Não é comum efetuarmos a purificação / tratamento de solventes para uso industrial em química fina. Aquele método de tratar THF com sódio metálico e benzofenona, nem pensar. Comprar solvente anidro é possível, mas e o custo do processo? Como resolver esta questão?

3.      A decisão pelo uso de di-isopropil-amideto de lítio (LDA) como base também leva a algumas reflexões. Lítio é um metal classe 3 conforme ICH Q3D; por ser introduzido intencionalmente no processo, deve-se efetuar uma análise de risco sobre o potencial de contaminação do IFA com resíduos deste metal? Mais ainda: o subproduto da reação de desprotonação é a di-isopropilamina. Dependendo do momento em que esta base é introduzida no processo – se próximo ou distante à etapa em que o IFA final é formado – e das possibilidades de purga, sua equipe analítica deverá desenvolver metodologia capaz de controlar resíduos desta amina no IFA, além de determinar os limites aceitáveis a partir de cálculos de PDE. Mas não para por aí: você já ouviu falar em N-nitrosaminas? Cabe um artigo só para discutir a problemática das N-nitrosaminas como impurezas residuais não relacionadas dos IFAs. O químico de processo deverá dominar bem a temática, pois estas substâncias potencialmente carcinogênicas podem ser formadas a partir de alquilaminas presentes no meio reacional. Sua equipe analítica certamente não vai te amar quando souber disso.....

4.      Solventes residuais. Dependendo da situação, é necessário que eventuais resíduos dos solventes introduzidos no processo sejam controlados no IFA. Somente nesta reação, você trouxe à sua equipa analítica a necessidade de desenvolver (e validar) metodologia de análise para 3 solventes introduzidos intencionalmente no processo: THF, heptano, etilbenzeno. Agora, uma rápida pesquisa no Wikipedia nos ensina que o etilbenzeno é produzido a partir da reação do benzeno (solvente classe I conforme ICH Q3C) com o etileno. Dependendo do momento em que esta solução contendo etilbenzeno é introduzida no processo – se próximo ou distante à etapa em que o IFA final é formado – e das possibilidades de purga, sua equipe analítica também deverá desenvolver metodologia analítica para o monitoramento do benzeno – que você nem introduziu intencionalmente no processo – no produto final. Definitivamente, seus colegas da equipa analítica não irão convidá-lo para a próxima festa de confraternização..... 

5.      Se você encontrou soluções criativas para os problemas acima, e obteve o produto desejado, ainda não se considere vitorioso na sua missão. Minha experiência mostra que o químico de desenvolvimento de processos conduz muito mais experimentos visando a purificação do produto aos níveis de pureza aceitáveis para ele ser utilizado como um IFA, do quer para sintetizá-lo. Isto porque os limites aceitáveis de impurezas orgânicas são muito baixo – normalmente 0,15% é o valor máximo, mas para alguns tipos de impurezas estes limites podem ser reduzidos ao nível de ppm. Aquele conceito de que um produto está suficientemente puro quando a análise elementar estiver conforme JOC e o espectro de RMN está sem ruído não vale quando tratamos da qualidade de IFAs. Conhece o terceiro senso do Programa 5S, o chamado Seisou ou Senso de Limpeza? O mais importante não é o ato de limpar, mas o ato de não sujar. Trazendo este conceito para desenvolvimento de processo de IFAs, às vezes é necessário que o químico de processo otimize as etapas do processo de fabricação de um IFA no sentido de reduzir ao máximo as reações secundárias e degradações, para que as etapas de purificação não inviabilizem economicamente o processo por baixo rendimento.

Enfim, o objetivo não é desencorajar, mas mostrar que há competências exigidas de um químico de desenvolvimento de processos de fabricação de IFAs que normalmente não são desenvolvidas nas nossas jornadas acadêmicas, até porque não fazem sentido se a pesquisa não tiver como objetivo o desenvolvimento de produtos. Trabalhar nesta área significa estar disposto a aprender sempre (esta problemática envolvendo as N-nitrosaminas, por exemplo, surgiu em 2018). E para finalizar: as competências necessárias ao químico de desenvolvimento de processos são diferentes daquelas requeridas dos químicos que trabalham no desenvolvimento de novas entidades químicas (NCE, do inglês New Chemical Entity). Talvez algum colega que atue em drug discovery possa contribuir compartilhando um artigo sobre este tema.

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