Para a sobrevivência e
desenvolvimento do SUS é preciso construir e fortalecer a consciência política
de que um sistema universal é o melhor caminho para a justiça social e a
proteção da saúde de todos sem distinção. É como pensa o ex-ministro da Saúde
(de 2007 a 2011), José Gomes Temporão, hoje diretor executivo do Instituto
Sul-americano de Governo em Saúde (ISAGS). Histórico defensor do direito à
saúde, Temporão disse em entrevista à pesquisa Região e Redes que o SUS pensado
em 1988 teve sua face desfigurada e seus princípios solapados. Portanto, em sua
opinião, a discussão da questão regional só fará sentido em um cenário de
resgate do SUS público e universal de fato.
RR – São características do sistema
de saúde brasileiro um pluralismo de entes e prestadores como resultado do
processo de descentralização federativa sem regionalização e integração. Como
construir um pluralismo integrado sob a égide do setor público, como orienta a
Constituição Federal de 1998, de forma a sair da inércia de políticas focais,
defensivas e pouco democráticas?
José Gomes Temporão – Políticas
focais estão sempre rondando como espectros as práticas institucionais em
muitas conjunturas, mas não creio que isso se aplique ao SUS que, na verdade,
vai na contramão dos “pacotes” vendidos pelas agências internacionais.
Inclusive, creio que a experiência brasileira de pactuação em um contexto desse
federalismo hipercomplexo é bastante interessante e deve ser a base para outros
avanços. Recentemente o ministro Mangabeira Unger [da Secretaria de Assuntos
Estratégicos] apontou o modelo de pactuação do SUS como referência a ser
copiada pela educação.
RR – Existem diferentes modelos de
gestão e planejamento regional, entre os quais, as propostas de autarquias do
professor Gastão Wagner (Unicamp) e de consórcios do professor Alcides Miranda
(UFGRS). Qual a sua opinião sobre esses modelos? Seriam eles, de fato, como
defendem os professores e pesquisadores sobre o tema, a alternativa para seguir
avançando com o SUS?
JGT – Os modelos propostos são ambos
interessantes, mas de fato remetem à necessidade de uma profunda reforma do
Estado e não apenas na saúde. Já foi dito no passado que o SUS seria em si um
belo exemplo de reforma do Estado, principalmente quando observamos as
inovações introduzidas com as conferências e conselhos, assim como com os
processos de pactuação intergestores. Ocorre que, para uma mudança efetiva e
profunda, seria necessário avançarmos além do modelo jurídico-institucional.
Mas tudo isso perde o sentido quando se percebe que o SUS que foi pensado e no
qual acreditamos ao longo do tempo foi tendo sua face desfigurada e seus princípios
solapados. Portanto, a discussão da questão regional só faz sentido em um
cenário de resgate do SUS público e universal de fato.
RR – Um dos grandes debates sobre
saúde no Brasil atualmente diz respeito ao financiamento. Mas a conjuntura
econômica e o cenário político pouco ou nada contribuem com essa discussão. Na
sua visão, qual é a melhor maneira de lidar com esse problema quase que
intrínseco ao SUS e que limita avanços necessários e importantes? De onde seria
possível criar fontes mais estáveis para o financiamento do sistema público
brasileiro?
JGT – A questão do financiamento
setorial diz respeito ao modo como a riqueza produzida pelo País é apropriada
por uma parcela pequena da população. A tão “cantada em prosa e verso”
mobilidade social da última década foi feita com apenas 5% do PIB ao ano. Sem
uma efetiva reforma fiscal e tributária, sem a revisão da questão da dívida pública,
sem a efetiva implantação do imposto sobre grandes fortunas e heranças, sem a
revisão da política de subsídios e renúncia fiscal que estimula o
fortalecimento do mercado privado de planos e seguros a discussão sobre o
financiamento da saúde continuará a tocar na superfície do problema.
RR – Grande parte das melhoras nos
indicadores sociais brasileiros nas últimas décadas estão ligados à saúde. O
conceito ampliado de saúde mostra-se importante atualmente. Afinal, é difícil,
se não impossível, discutir saúde sem considerar a economia, o meio ambiente, o
saneamento, a habitação, os direitos como um todo. Qual a importância desse
nível de discussão para garantir bem-estar aos brasileiros com equidade e
universalidade?
JGT – É fundamental e indissociável
do conceito de desenvolvimento em que acreditamos. Mas é preciso sair da
dimensão abstrata expressa nos termos economia, meio ambiente, direitos etc.,
para pensar intervenções práticas que deem uma nova dimensão à
transversalidade/intersetorialidade. Temos um bom exemplo nas potencialidades
das políticas voltadas para a primeira infância, para os primeiros anos do
desenvolvimento humano. A Fundação Oswaldo Cruz vem desenvolvendo a estratégia
Brasileirinhos Saudáveis que se apresenta como um belo exemplo dessas
potencialidades.
RR – Frente a complexidade das
transformações ocorridas no Brasil desde a criação do SUS, quais
redirecionamentos das políticas sociais serão necessárias para a ampliação de
legitimidade do sistema público frente a sociedade brasileira?
JGT – Não se trata de
redirecionamento das políticas sociais, mas sim de um processo muito mais
complexo que se dá no espaço de construção e reprodução das ideologias. Da
construção e fortalecimento de uma consciência política no povo de que um sistema
universal é o melhor caminho para a justiça social e a proteção da saúde de
todos sem distinções. E isso se dá no campo da política, mas também no esforço
de qualificação do SUS para que se possa perceber que existe aí um modelo
superior que deve ser apoiado pela sociedade brasileira.
Fonte: RR Regiões e Redes
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