Há tempos cientistas vêm alertando para falta de informações sobre os animais transgênicos.[Imagem: Max- |
Animais transgênicos
O uso de mosquitos transgênicos pode mudar a forma como o Brasil vem combatendo o Aedes aegypti.
Mas, apesar das taxas de sucesso alardeadas por autoridades e pela empresa que inventou o novo inseto, o mosquito OX513A, como foi batizado, é polêmico.
Produzida pela empresa britânica Oxitec, a variação genética do Aedes aegypti poderá ser o primeiro inseto do tipo a ser comercializado no mundo, mais provavelmente, no Brasil, onde vem encontrando seu mais amplo campo de testes.
A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou testes em 2011 e uso comercial em 2014, mas a falta de um parecer da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) trava a entrada do mosquito em um mercado que poderá representar milhões em receita para a Oxitec.
Segundo a Anvisa, "a empresa não poderá comercializar o produto até que conclua essa discussão sobre o enquadramento do mosquito transgênico (em uma categoria que possa ser fiscalizada de acordo com atribuições da agência)".
Crítica dos cientistas
Diante do limbo regulatório, a Oxitec reparte com a prefeitura de Piracicaba, no interior de São Paulo, os custos dos testes feitos com o mosquito em um bairro da cidade. Piracicaba poderá se tornar a primeira cidade no país a receber a espécie em larga escala. A prefeitura decidiu ampliar os testes, liberando o OX513A também no centro da cidade, onde vivem 60 mil pessoas - contra 5,5 mil no bairro onde o inseto vinha sendo testado anteriormente.
Segundo a prefeitura e a Oxitec, o Aedes aegypti modificado geneticamente tem apresentado altas taxas de desempenho nos testes, supostamente reduzindo em muito a ocorrência de dengue.
Contudo, os resultados são alvos de críticas por parte da comunidade científica, que demonstra preocupação com a ampliação dos experimentos.
Esta semana, ativistas e cientistas de Piracicaba levaram à promotora de Justiça de Direitos Humanos e Saúde Pública na cidade uma representação em que, além de voltar a questionar o uso do mosquito, pedem acesso a dados oficiais e detalhados sobre os testes realizados no projeto da Prefeitura batizado de "Aedes aegypti do Bem".
O grupo queria ainda que o Ministério Público de São Paulo barre a ampliação do projeto para o Centro. Mas, ao contrário dos ativistas, a promotora não vê conflito de interesses no fato de a Oxitec ter sido, segundo o grupo, a única a fornecer os dados que atestam a eficiência do OX513A.
"Não vejo conflito de interesse. Os dados da empresa podem ser acompanhados por qualquer cientista, como definido pelo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de abril de 2015," diz ela. "E, no bairro em que o transgênico foi testado, o número de casos confirmados de dengue passou de 133 em 2014 para 1 em 2015".
O TAC obrigava o município e a empresa a liberarem dados mensalmente sobre os testes em Piracicaba, o que vem sendo feito. Mas cientistas questionam a imparcialidade dos dados apresentados nos documentos liberados até agora e pedem dados oficiais, e não dados gerados pela empresa produtora do mosquito transgênico.
"Queremos saber a eficácia antes de a prefeitura ampliar o programa. O mosquito é uma nova espécie. A transgenia está fazendo em laboratório o que a natureza levou milhares de anos para fazer. E o desenvolvimento é de uma empresa privada, que tem interesse em vender. Mas, se der errado, não tem volta," alerta Eloah Margoni, vice-presidente da Sociedade para a Defesa do Meio Ambiente de Piracicaba, uma das signatárias da representação.
Dúvidas sobre mosquito transgênico
Os questionamentos sobre o mosquito transgênico - testado na Malásia, no Panamá e nas Ilhas Cayman - não se restringem ao Brasil. No ano passado, mais de 150 mil pessoas assinaram uma petição que tentava evitar os testes do OX513A na Flórida. Como no Brasil, também nos Estados Unidos a tecnologia ainda não tem aprovação para comercialização.
Em janeiro, a Federal Drugs Administration (FDA), o equivalente americano à Anvisa, informou que colocará o pedido da Oxitec para testes na Flórida sob consulta pública, antes de avaliar o impacto ambiental do uso do mosquito transgênico no local, o que, segundo a FDA, não tem data para ocorrer.
O mosquito transgênico é modificado geneticamente para, solto no meio ambiente, levar à redução drástica da população local do inseto. Depois de fecundar fêmeas Aedes aegypti selvagens, a maior parte das suas crias morre - no máximo 4% das larvas chegam à vida adulta. De acordo com a empresa que desenvolveu o inseto, ao se reduzir a população do mosquito, caem incidências das doenças transmitidas por ele, como dengue, chikungunya e zika.
População como cobaia
Mas diversos cientistas, brasileiros e estrangeiros, afirmam que os estudos feitos pela Oxitec - e aceitos pela CTNBio - não são suficientes para garantir a eficiência no combate às doenças.
"A população não pode ser cobaia", critica o biólogo José Maria Ferraz, conselheiro da CTNBio à época em que o órgão inicialmente examinou o OX513A. "Não somos contra modificações genéticas. Somos contra a forma apressada como a liberação foi feita," diz ele, que também assinou a petição enviada ao Ministério Público em Piracicaba.
Dezoito conselheiros votaram na sessão de 10 de abril de 2014 da CTNBio que liberou o mosquito transgênico - 16 a favor, um contra e uma abstenção. Contudo, a CTNBio até hoje aprovou todos os pedidos de organismos transgênicos que lhe foram submetidos, em sua maioria espécies vegetais.
Pesquisador convidado do Laboratório de Engenharia Ecológica da Unicamp, Ferraz diz que a liberação do uso comercial do OX513A pelo órgão foi "obscura" e, segundo ele, levou a metade dos 5 anos pelos quais normalmente pedidos como este tramitam.
"Foi um processo totalmente avesso à tradição da CTNBio. O uso do mosquito foi liberado antes de testes conclusivos, de campo e de estatística," diz ele, que não participou da votação final, porque seu mandato já estava encerrado.
Mosquito transgênico e tetraciclina
José Maria Ferraz e outros pesquisadores insistiram junto ao MP de São Paulo nos argumentos que já haviam apresentado à CTNBio, mencionados no parecer técnico 3964/2014, que liberou a aplicação do mosquito.
Alertam para a possibilidade de proliferação do mosquito OX513A, caso as larvas entre em contato com o antibiótico tetraciclina presente no meio ambiente, que "desliga" o dispositivo genético que impede os insetos de chegarem à vida adulta.
"O Brasil baniu a tetraciclina em ração animal em 2009", rebate Hadyn Parry, chefe-executivo da Oxitec. "A despeito da especulação da mídia devido à pressão de grupos, a presença da tetraciclina no meio ambiente é mínima e, quando ocorre, degrada rapidamente se exposta à luz do sol".
Mas o biólogo brasileiro chama a atenção para o fato de haver uso veterinário da tetraciclina, e também em humanos. "Antes de soltar o mosquito, teria sido importante avaliar a presença da tetraciclina e de antibióticos semelhantes no meio ambiente, principalmente no esgoto". Sem o tal "desligamento", crias do mosquito genético poderiam chegar à idade adulta.
Em resposta, a Oxitec afirma que estudos em Jacobina, na Bahia, nas Ilhas Cayman e no Panamá não sugerem qualquer perda de eficácia (e percentual superior de sobrevivência) do OX513A. E que, se houvesse presença da tetraciclina, a empresa teria identificado em seus monitoramentos.
A empresa britânica menciona, ainda, estudo conduzido em 2013 por pesquisadores da Unicamp e do Imperial College London mostrando que os níveis de tetraciclina nos locais em que o mosquito seria liberado eram insuficientes para "desligar" o dispositivo genético que mata os insetos transgênicos antes da vida adulta.
De acordo com a Oxitec, as primeiras liberações do mosquito no meio ambiente foram feitas antes de tais estudos, em 2011 e 2012, em Juazeiro, Bahia, onde foram conduzidos testes de campo autorizados pela CTNBio.
Efeito colateral
O maior temor dos cientistas críticos ao mosquito é uma espécie de efeito colateral da redução do Aedes aegypti selvagem. Cientistas temem isso que abra caminho para o mosquito Aedes albopictus, mais eficiente na transmissão de doenças como a chikungunya, malária e febre amarela.
"O albopictus já foi o principal fator de transmissão da dengue. E pode voltar. E a natureza ensina que não há vazio. Se um mosquito sai, entra outro", diz o ex-conselheiro da CTNBio Leonardo Melgarejo, professor do mestrado profissional em agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina.
"E, o que aconteceria? A empresa criaria um transgênico de outro mosquito para as prefeituras comprarem novamente, num ciclo sem fim?", questiona ele, que também se manifestou contra a liberação do inseto transgênico para comercialização durante seu mandato de conselheiro na CTNBio.
No ano passado, uma equipe do Instituto Smithsoniano de Pesquisas Tropicais dos EUA destacou riscos fortes dessa ocupação pelo albopictus dos espaços deixados pelo aegypti.
A Oxitec afirma não ter identificado entrada do albopictus no lugar do aegypti. "Isso foi estudado recentemente no Panamá e não houve evidências de substituição. Resultados obtidos em um estudo em andamento em Piracicaba, onde o Aedes albopictus está presente, mostram evidências insuficientes de que o Aedes aegypti será substituído", disse Hadyn Parry, chefe-executivo da Oxitec.
Ferraz diz que "o problema é justamente este, que a empresa está fazendo uma experiência que enriquece a base de dados deles. Fizeram testes no semiárido e agora vieram para a região de Mata Atlântica. O ônus da prova não pode ser invertido. A empresa tem que provar que não haverá problemas, e não dizer que não há evidência dos problemas," diz Ferraz.
Em meio ao debate, governos justificam a ampliação de seus programas de uso do inseto transgênico diante da emergência que a dengue e agora o zika impuseram.
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