O dia 30 de maio de 2008 foi marcado pelo falecimento do jovem Lorenzo Odone, um dia após completar 30 anos de idade. Aos seis anos, ele foi diagnosticado com adrenoleucodistrofia, ou ALD, quando os médicos avisaram aos seus pais que teria, no máximo, mais dois anos de vida. Ele morreu após uma forte pneumonia, causada pela aspiração de alimentos. Começou a sangrar muito e morreu antes da chegada da ambulância. “Não podia ver ou se comunicar, mas ainda estava conosco”, declarou o pai, Augusto Odone, no dia da morte.
O filme “O Óleo de Lorenzo” (1992), de George Miller, conta a história da infância de Lorenzo e foi indicado ao Oscar de melhor roteiro original em 1993. Miller, que ganhou notoriedade ao dirigir Mad Max em 1979, é formado em medicina na Universidade de New South Wales, na Austrália, onde nasceu e exerceu a profissão de médico, o que pode justificar seu interesse na história.
A obra cinematográfica relata a luta dos pais para entenderem o problema de saúde do filho. A doença é causada por uma falha genética que resulta em um colapso do sistema neurológico, decorrente do acúmulo de ácidos graxos não metabolizados nas células nervosas. Eles chegaram a uma fórmula preparada com a mistura de dois derivados de triglecerois, oriundos dos óleos de oliva e de canola, que seria capaz de interromper a síntese de ácidos graxos no organismo, retardando os danos neuronais ocasionados pela doença. O Sr. Odone ganhou título de doutorhonoris causa na Universidade de Stirling da Escócia, por seus estudos sobre a ALD.
Muitas das questões levantadas com a história da família Odone se mantem contemporâneas e guardam estreita relação com os fatos envolvendo a produção e distribuição de fosfoetanolamina sintetizada nos laboratórios acadêmicos do Instituto de Química da USP de São Carlos, pelo químico e professor aposentado Gilberto Chierice.
A fosfoetanolamina é utilizada pelo organismo para produzir cadeias de fosfolipídeos que, assim como os ácidos graxos insaturados do óleo de Lorenzo, entram na composição das células humanas. Os fundamentos científicos do metabolismo das células cancerosas foram objeto de estudos publicados em 1926 e levaram um bioquímico alemão ao Prêmio Nobel de Medicina em 1931. A alteração da função bioenergética das células é considerada uma pedra fundamental da carcinogenêse e a célula maligna tem um defeito que está associado à diminuição da ação da fosfoetanolamina.
O professor Chierice prende-se a esses dados bioquímicos quando defende o uso da substância como uma forma de cura para o câncer. Ele é um respeitado cientista que já publicou livros e quase uma centena de artigos científicos, além de ter orientado 32 mestrados e 27 doutoramentos. Por isso, conhece bem os ritos formais aos quais o produto deveria ter sido submetido para elucidação da sua eficácia e segurança.
As cápsulas são produzidas por ele há mais de 20 anos, tempo suficiente para que as convicções do professor pudessem se converter em uma possibilidade concreta de tratamento para as pessoas com câncer, sem a necessidade de se produzir qualquer tensionamento sobre a ciência ou órgãos reguladores, como fizeram os pais do Lorenzo. Deve haver motivos para que o Prof. Chierice tenha sido adotado um caminho informal por tanto tempo e para que os institutos de pesquisa não tenham se interessado antes pelos potenciais usos médicos da substância.
Para as pessoas doentes ou seus familiares, que convivem com o mais profundo medo diante de um câncer que pode ser incurável, as promessas e os dados disponibilizados sobre a fosfoetanolamina, naturalmente geram interesse, esperanças e mobilização. Enfim, apesar do ceticismo de parte dos cientistas, profissionais de saúde e reguladores, às vezes, a solução pode estar em coisas simples, como ocorreu com o óleo que ajudou Lorenzo a viver muito mais do que seus médicos acreditavam.
O órgão regulador, por sua vez, adota a postura que também era esperada, afirmando que o produto não passou por estudos que permitam atestar sua segurança e eficácia. Foi a mesma posição que a agência americana de medicamentos adotou em relação a mistura de ácidos graxos utilizada por inúmeros pacientes portadores de ALD, quando ela foi desenvolvida pelo casal Odone.
Se há uma promessa envolvendo uma substância que é produzida em laboratório de uma das maiores universidades do país e que conta com a chancela de um cientista respeitável, é esperado que o Poder Judiciário acolha pedidos no sentido do acesso ao produto, como aconteceu com a decisão do Ministro Luiz Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal. “O objetivo da decisão era fomentar o debate público sobre as pesquisas da área da saúde feitas em universidades públicas”, conforme ele próprio esclareceu.
O professor e, certamente, discípulos seus são profundos conhecedores das potencialidades de uso da fosfoetanolamina no tratamento de câncer, há um conjunto de importantes e reconhecidas instituições de pesquisa que podem realizar os estudos de forma correta, precisa e rápida. O órgão regulador de medicamentos do Brasil, a Anvisa, está dotada de capacidade para orientar, acompanhar e apoiar a realização desses estudos.
Esses caminhos eram conhecidos e poderiam ter sido trilhados antes pelo ilustre professor. Talvez, à tempo de evitar que Michaela Odone, mãe de Lorenzo, falecesse de câncer no pulmão em 2000. Esse pode ser um bom exemplo que pode obrigar a adequada articulação entre as instituições de ensino, pesquisa, produção e regulação de medicamentos, no sentido de abreviar o tempo para a pesquisa e desenvolvimento de um novo medicamento no país. Então, é mais simples agir do que discutir.
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