Na
ONU é tempo de mudanças. Ainda neste ano sai Ban Ki-moon e entra – coisa rara –
alguém da terra de Camões: António Guterrres, da animada Freguesia lisboeta de
Santos-o-Velho, ex-Secretário Geral do Partido Socialista português.
Quase
em seguida a troca da vez será na Organização Mundial da Saúde, a OMS, que em
maio de 2017 elege novo Diretor-Geral para substituir Margaret Chan, uma
chinesa de Hong Kong, médica formada na pacata cidade canadense de London, que
ao longo de duas gestões (entrou em 2007) não conseguiu se impor, acomodando-se
frente à pesada e na prática imutável estrutura da Organização.
Manteve
os dois principais executivos, o ganês Asamoa-Baah e o britânico Ian Smith, que
dão as cartas em Genebra respectivamente há 18 e 13 anos. Mais complicado para
ela foi lidar com o estranho orçamento da Organização que prevê para o
exercício 2016-2017 gastos de US$ 4,4 bilhões, dos quais apenas US$ 1,0 bi é
proveniente das contribuições dos países.
A
OMS é de fato sustentada (os restantes US$ 3,4 bi) por “contribuições
voluntárias” de múltiplos doadores, dos quais o principal é a Fundação Bill
& Melinda Gates cuja quota, atualmente de US$ 690 milhões de dólares,
corresponde a 15,7% do orçamento total e é superior até mesmo ao que é aportado
pelos Estados Unidos, superando em cerca de 24 vezes a soma das contribuições
dos BRICs (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul).
Um
dos problemas dessa curiosa composição das fontes de receita é que cada doador
determina onde deve ser gasto o dinheiro que dá. Os Gates, p.ex., priorizam
cinco áreas: doenças diarreicas, pneumonia, malária, Aids e tuberculose. O
resultado é que o orçamento fica engessado e áreas prioritárias como as doenças
não transmissíveis e o fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde sofrem cronicamente
com a insuficiência de recursos por não merecerem a atenção dos financiadores
externos. Segundo Jules Frenk, ex-ministro da saúde do México, “a agência ficou
presa num círculo vicioso, permanentemente subfinanciada, sendo seu maior
contribuinte não um país e sim a Fundação Gates. Sem ela não sei o que poderia
acontecer com a OMS”.
Chan
ao tomar uma decisão relevante depende da aprovação dos diretores das 6
Oficinas Regionais, que são eleitos pelos países da própria região e na prática
funcionam de maneira autônoma.
Um
exemplo é a Organização Pan-Americana da Saúde, OPAS, que já existia antes da
OMS ser criada e embora as decisões formais nesse sentido, nunca de fato se
integrou ao comando de Genebra.
Em
parte por isso a OPAS tem relevância limitada nas Américas e em 2/2013 os
países membros optaram por escolher uma diretora de perfil pouco agressivo
(similar ao da Sra. Chan), Carissa Etienne, da pequenina ex-colônia francesa
Dominica (72 mil habitantes). As outras Oficinas cobrem a África (sede em
Brazaville, no Congo), o Sudeste Asiático (em Nova Delhi), a Europa (em
Copenhague), Mediterrâneo Oriental (no Cairo) e Pacífico Ocidental (em Manila).
Excelentes
pesquisadores prestam serviços à OMS, mas suas decisões por vezes esbarram na
demorada e resistente burocracia institucional, como no caso da tardia
declaração da emergência global pelo vírus Ebola em 2014 ou pela resposta
inicialmente errada à epidemia da influenza pelo H1N1 em 2009.
Na
tentativa de imprimir uma marca pessoal à sua gestão, Margaret Chan apoiou a
ideia da Universal Health Coverage (UHC – Cobertura Universal em Saúde) que
deveria funcionar como um substituto moderno às políticas de atenção primária
em saúde aprovadas em Alma-Ata – então na Rússia, hoje no Cazaquistão - em
setembro de 1978 e que daí em diante se constituíram no coração das ações de
saúde pública em todo o mundo.
Milhares
de reuniões, conferências e dólares despendidos não propiciaram algo realmente
efetivo ou concreto e segundo seus críticos (entre os quais os Gates) mais
céticos nunca ficou claro o que se queria dizer com UHC, não obstante a
insistência com que tem sido divulgada pela direção geral da OMS. Para esta,
UHC significa que “todas as pessoas recebem os serviços de saúde que necessitam
sem sofrer dificuldades financeiras quando pagam por eles”. Conceito tão amplo
de um lado atraiu os investidores do setor saúde (entusiástico apoio do Banco
Mundial, do The Economist, da indústria de Planos de Saúde principalmente em
populosos países asiáticos como Indonésia e China) por vislumbrarem na UHC uma
grande oportunidade para o capital privado.
De
outro lado, a ideia terminou por condenar ao gradativo desprestígio sistemas
públicos universais como os do Reino Unido, Espanha e Portugal. Os EUA e as
Américas foram os que menos se esforçaram por implantar a nova proposta e o
Brasil com seu SUS ficou esquecido, à margem de um processo que, pelo menos até
aqui, não deu os resultados previstos e prometidos por seus criadores.
Novas
regras foram estabelecidas para a atual eleição na OMS, em princípio para que
se torne mais transparente e democrática. Isso significa que os já
oficializados seis candidatos ao posto de Diretor Geral submeter-se-ão, em
novembro, a um debate com os países membro num web-fórum ao longo de 3 dias,
quando responderão sobre suas plataformas. Em janeiro os 34 componentes do
Comitê Executivo da OMS eliminarão um dos candidatos e entrevistarão os cinco
remanescentes a fim de decidir por três deles que serão submetidos à Assembleia
Geral da Organização em maio de 2017. Esta escolherá o novo Diretor em votação
secreta na qual o vencedor necessita o voto de 2/3 dos presentes.
Com
a lembrança positiva da liderança inconteste da norueguesa Gro Harlem Bruntland
(na OMS de 1998 a 2003) e não mais desejando repetir alguém tão débil quanto
Margaret Chan, a busca agora é por um líder forte o bastante para tomar as
decisões técnicas necessárias e equacionar a “questão Gates” tornando mais
autônomo e sustentável o orçamento institucional.
Cinco
são médicos: duas mulheres – Sania Nishtar do Paquistão, Flavia Bustreo da
Itália – mais Philippe Douste-Blazy da França, David Nabarro do Reino Unido e
Miklós Szócska da Hungria. O sexto, Tedros Adhanom Ghebreyesus, atual ministro
das Relações Exteriores da Etiópia, é biólogo com PhD em saúde comunitária pela
Universidade de Nottingham. A democracia não é uma exigência nem condição
sine-qua-non para qualquer escolha no âmbito da ONU e menos ainda no continente
africano, mas o caso da Etiópia, no conturbado Chifre da África, requer
atenção. Tanto ele quanto o 1º Ministro Hailemariam Desalegn pertencem à etnia
tigray que embora tenha só 6% da população etíope, governa o país de maneira
absoluta, oprimindo os largamente majoritários oromos (35%) e amharas (27%) que
desde novembro de 2015 promovem manifestações de rua contra o governo, o que
motivou o decreto de estado de emergência agora imposto para sufoca-los. No
país, Legislativo e Judiciário são obedientes ao Executivo, as eleições costumam
ser ganhas pelos tigray com 99% dos votos e os direitos humanos são
sistematicamente violados. Os EUA, em seus esforços para conter o terrorismo da
Al Qaeda nas vizinhos Yemen e Eritreia, são relevantes aliados do governo
etíope.
A
questão é: irá Tedros Ghebreysus, na OMS, ao contrário do que faz em seu país,
agir como um democrata respeitando as liberdades e opiniões dos demais? A seu
favor pesam as várias funções já exercidas na OMS, como a de diretor do Fundo
Global para combater Aids, Tuberculose e Malária, assim como a declaração da
União dos Estados Africanos de que apoiará seu nome, o que lhe confere o
favoritismo inicial para o pleito de maio do ano que vem.
Vale
destacar a proposta de Douste-Blazy, baseado na sua experiência como
ex-ministro da Saúde e das Relações Exteriores da França e no trabalho que vem
fazendo à frente da Unitaid, a iniciativa global em apoio a ações de combate à
Aids e outras doenças transmissíveis que é financiada por dez países através de
uma pequena taxa sobre passagens aéreas que sustenta um orçamento de US$ 2,4
bilhões anuais. Agora Blazy afirma que uma taxa similar poderá dar sustentação
a toda a programação da OMS.
Nenhuma
candidatura proveniente das Américas, desta feita, foi considerada como viável.
Talvez a última esperança tenha ocorrido na gestão do brasileiro Carlyle Guerra
de Macedo que dirigiu a OPAS de 1983 a 1995 e num determinado momento chegou,
mesmo como uma hipótese longínqua, a ser cogitado para o posto máximo da
Organização em Genebra.
No
momento o Brasil tem mínima participação nos fóruns globais da área da saúde.
Dos oito ministros setoriais efetivados entre 2003 e 2015, pelo menos quatro
eram políticos à procura de vantagens para suas carreiras ou para seus partidos
e os demais alcançaram pouca expressão internacional.
Outra
novidade apresentada pela burocracia dirigente da Organização é o Código de
Conduta, ao qual supostamente os candidatos devem satisfazer. Além de não
discutir problemas cruciais num mundo onde a explosão de epidemias oportunísticas
e a presença cada vez mais agressiva do capital privado têm influência
crescente, o Código insiste em conceitos idealísticos como “credibilidade,
espírito aberto, transparência, boa fé, dignidade, respeito mútuo e moderação”,
com os quais qualquer um dos candidatos não há de ter dificuldades em
comprometer-se, mesmo sabendo que dificilmente poderá cumpri-los na íntegra.
E a
UHC? Caso seja esquecida, o que a substituirá?
Vitor
Gomes Pinto
Escritor. Analista internacional. Doutor em Saúde Pública, membro do Observatório da Saúde do Distrito Federal
Escritor. Analista internacional. Doutor em Saúde Pública, membro do Observatório da Saúde do Distrito Federal

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