Passados dois anos da epidemia
de zika no Brasil, que teve 2.653 casos de microcefalia confirmados pelo
Ministério da Saúde até maio, a ciência ainda não sabe por que uma infecção
viral amena noutras partes do mundo adquiriu tamanha virulência por aqui. Ou
não sabia.
Um artigo publicado
sexta-feira (29) no periódico americano "Science" parece ter lacrado
a origem: uma mutação pontual no genoma do arbovírus. Se a sequência genética
do zika fosse um texto com o triplo do tamanho deste, a alteração
corresponderia à troca de uma única letra em meio a 10.617 caracteres.
A mudança levou à substituição
de um aminoácido numa proteína da capa do vírus. Na analogia, seria como a
troca de uma letra "p" por "f" que alterasse a palavra de
"pato" para "fato".
Os pesquisadores envolvidos,
quase todos de instituições na China, chegaram à mutação de maneira engenhosa.
Comparando linhagens asiáticas do zika anteriores à epidemia de 2013 na
Polinésia Francesa com outras mais recentes, causadoras de microcefalia na
América Latina, identificaram sete dessas substituições.
Construíram então sete vírus
mutantes, cada um com uma mutação. Testaram então as construções injetando-as
no cérebro de camundongos de um dia e verificaram que só as partículas
portadoras da mutação S139N causavam 100% de mortalidade, mesmo efeito da cepa
latino-americana.
A seguir, reverteram essa
mutação, criando a variedade N139S. Inoculada nos roedores, provocou a morte só
de 17% deles, taxa similar à da cepa asiática mais antiga.
Os testes incluíram também
culturas de células precursoras neurais humanas. De novo, foi a S139N a que
produzia o maior estrago. A alteração da proteína na capa do vírus parece
aumentar sua afinidade com células do cérebro em formação e facilitar a entrada
do vírus nelas.
Os próprios autores do
trabalho têm lá suas dúvidas quanto a esse "erro tipográfico" ser a
causa única para o zika se tornar um destruidor de tecidos cerebrais de fetos.
"Nós esperávamos que várias mutações fossem necessárias para causar
microcefalia muito significativa, em comparação com a cepa asiática mais
antiga", disse à revista "The Scientist Zhiheng Xu, da Academia
Chinesa de Ciências.
Não se exclui que fatores como
predisposições genéticas, pobreza e condições ambientais também estejam em
ação. No Brasil, é intrigante verificar que foi mínima a penetração da
microcefalia da zika ao sul de Minas Gerais, embora sejam regiões com dengue e
o mesmo mosquito transmissor, Aedes aegypti.
Alysson Muotri, um brasileiro
da Universidade da Califórnia em San Diego envolvido no esforço de pesquisa
sobre zika, disse à "The Scientist" ter gostado muito do trabalho
chinês. Mas concorda com colegas de outras instituições quanto à necessidade de
experimentos mais similares às condições de gestação para dar robustez ao
achado.
Pode ser que essa mutação seja
só uma condição necessária, mas não suficiente, para a epidemia de zika com
microcefalia. Mas já seria o bastante para tornar a S139N uma descoberta
sensacional.
Folha: Marcelo Leite, Foto: Lalo
de Almeida/Folhapress
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